Após encontrarem Heitor, o rei levou seus homens até o vilarejo que estava sendo atacado. As formigas não esperavam aquele reforço, e se retiraram diante da nova força. Pouco depois Lógos foi levada até um dos curandeiros da pequena vila para que a flecha fosse tirada. Quaere segurou a mão de Lógos enquanto ela gritava e chorava de dor, tentando dar o máximo de conforto que poderia naquele momento difícil.
- Não deve ser bom ter um corpo macio assim - Heitor comentou, vendo o sofrimento de Lógos - Tenho que agradecer por termos nossos exoesqueletos.
Quaere pensou naquele comentário de Heitor e percebeu o quanto Lógos tinha de ser corajosa para enfrentar aquela jornada. Lembrou de como uma pedra o acertara durante a fuga sem causar maiores danos graças ao seu exoesqueleto.
"Se meu corpo fosse macio como o de Lógos, aquela pedra teria me causado uma grande ferida" pensou o vagus, ainda segurando a mão de Lógos.
A flecha finalmente foi tirada, e Lógos parecia a ponto de desmaiar quando sua ferida foi coberta com uma pasta de ervas medicinais.
- Deixem ela descansar - disse o curandeiro - Ela precisará de muito repouso.
- Não - Lógos respondeu imediatamente - Não temos tempo. Preciso falar com Heitor.
- Então diga - Heitor se aproximou - O que motivou essa viagem, e tamanha exposição ao perigo?
- Há grande sofrimento no vale - Lógos respondeu com a voz cansada - Seu povo vive na completa escuridão e sob o domínio de uma falsa rainha. Eles precisam de seu rei.
- Eu não sou rei nenhum - disse Heitor - Me afastei desse caminho há muito tempo.
- Se não é o rei, o que me diz desses vagus que ainda o seguem? - Lógos indagou - Eles seguem seu comando, e pelo que ouvimos e vimos, você buscam ajudar aqueles que precisam. Emprestam sua força para manter a paz. Agora não são apenas os vagus que precisam de você, mas todos os insetos que vivem na Floresta de Gaia.
Heitor baixou a cabeça, pensando seriamente, mas não tinha resposta a dar.
- Por que foi embora? - Quaere perguntou - Por que abandonou nosso povo?
Heitor o olhou com tristeza escrita em seu rosto.
- Percebi muito tarde o que acontecia em Valesperança. Quando me dei conta do que estava acontecendo era tarde demais. Atlanta chegou com seu exército e eu soube que ela mataria qualquer um que pertencesse à família real e nosso próprio povo estava contra nós. Não havia opção além de fugir.
- Mas poderia ter voltado! - Quaere respondeu, cheio de ressentimento - Nosso povo não vê mais a rainha como sua salvadora. Ela é para os vagus apenas uma tirana que os oprime.
- Achei que não devia voltar - disse Heitor - Por muito tempo meu pai, e eu também, aceitamos as ideias de Atlanta. Para minha vergonha, acreditei em suas palavras e depositei nela minha confiança. Tenho grande parte da culpa da escuridão que caiu sobre Valesperança. Não sou digno de ser o rei.
- Digno? - Lógos conseguiu sorrir, achando a palavra absurda - Quem poderia ser digno de tamanho poder e responsabilidade. Não é por ser indigno que deveria buscar cada vez mais a dignidade. Lutar com todas as forças para merecer o imerecível? Já assumiu a responsabilidade por seus erros, agora deve lutar para repará-los. Busque ser o melhor, Heitor, e um dia pode ser que seja.
Aquelas palavras tocaram no fundo do coração de Heitor, alcançando sua alma e lhe dando a certeza de que devia agir.
- O que devo fazer? - Heitor perguntou.
- Vamos ao Templo de ....... - Lógos respondeu - Lá entregarei a você o presente que te dará a força para derrotar a Rainha Sombria.
Partiram ao amanhecer do dia seguinte, subindo o junto ao rio em direção ao templo. Com pequenos gravetos e pétalas de tulipas brancas, improvisaram uma maca para carregar Lógos, que estava fraca demais para seguir sozinha. Voaram com pouco descanso, e Quaere fez o seu melhor para acompanhar o ritmo dos seus companheiros.
Foi-se o dia a noite e a madrugada, e ao amanhecer do dia seguinte já podiam ver o grande e belo salgueiro onde o Templo de ..... repousava, com seus ramos balançando ao vento. Voaram tronco acima e encontraram o antigo templo, construído na ramificação do tronco principal.
O templo fora construído com a madeira branca de bétulas, toda ela lixada e untada com cera para que brilhasse com a luz do sol. Mas agora o templo se encontrava em evidente abandono. Quase não havia cera que protegesse as paredes e musgo ameaçava tomar a estrutura ancestral.
Heitor disse que já vira o templo algumas vezes, mas sentia-se envergonhado apenas de pensar em entrar nele, lembrando-se de como o abandono de suas tradições trouxeram a ruína de seu povo. Mas agora era hora de deixar a vergonha de lado e buscar a reconstrução.
Quando entraram no templo, tudo estava escuro, úmido e cheirando a mofo. Lógos se entristeceu ao ver o lugar naquela situação. Chamou Heitor para junto de sua maca e lhe disse o que fazer.
- Heitor, instrua seus homens a acender as lareiras, limpar o chão e as paredes, retirar o musgo e encerar a madeira.
- Não deveria me dar o presente? - Heitor perguntou.
- Primeiro cuidaremos do templo - ela determinou - Que ele brilhe ao sol como foi antigamente.
Sem mais discução, Heitor fez como Lógos pediu, e nas próximas horas pode-se ouvir asas e patas agitadas indo de um lado para o outro. O templo tinha diversas câmaras, salas e salões. Encontraram a cozinha, uma ampla biblioteca, quartos que antes foram usados para o repouso dos serviçais e salas de materiais diversos. Encontraram ferramentas de limpeza, lenha antiga e vários jarros de cera.
As lareiras foram acesas, derramando luz sobre o ambiente e afastando o frio. A poeira foi varrida para fora e o musgo foi retirado das paredes, e por fim, toda a madeira foi encerada até refletir a luz do sol. Até o cheiro do templo mudou. Antes tomado pelo fedor do mofo, agora estava tomado pelo delicioso odor das folhas do salgueiro.
Lógos repousava em uma das salas de descanso com Quaere ao se lado quando Heitor voltou.
- Está feito - disse o rei.
- Ótimo - Lógos respondeu e começou a se levantar.
- Lógos, você devia descansar - Quaere se aproximou, dando suporte a ela.
- Não posso descansar agora. Há muito para ser feito.
Com a ajuda de Quaere, Lógos caminhou lentamente pelos salões, e ao ver a beleza que retornara ao templo, expressou grande satisfação, e mesmo com toda a dor que sentia, era possível ver alegria em seu rosto. Foram até a biblioteca, onde havia centenas de livros. Eram eles contos e histórias dos vários insetos que habitavam a Floresta de Gaia. Lógos andou junto às prateleiras, leu diversas capas e separou vários livros. Por fim disse a Heitor:
- Você e seus homens devem ler esses livros. Não tenham pressa. Aprendam o máximo que conseguirem e discutam sobre eles.
- Isso é loucura! - Heitor disse, sendo tomado pela fúria - Atlanta avança sobre toda a Floresta de Gaia e você quer que leiamos livros?
- Faça o que peço, Heitor - não havia raiva na voz de Lógos, apenas aconselhamento - Quero ajudá-lo a cumprir seu propósito, e para isso preciso cumprir o meu. A mudança que desejamos não se sustentará sem a sabedoria necessária, e eu não entregarei tamanho poder nas mãos de tolos.
Sem argumentar, Heitor confiou nas palavras de Lógos, levou os livros e instruiu seus homens.
- Estou tão cansada - Lógos disse quando ela e Quaere ficaram a sós.
- Venha, vou leva-la de volta para sua cama.
Lógos sorriu docilmente, e segurando afetuosamente o rosto de Quaere entre suas mãos disse:
- Você tem sido um precioso amigo. Alegra-me ter passado por essas dificuldades ao seu lado.
- É o mesmo para mim - Quaere respondeu, sentindo o coração se aquecer.
- Quando se sentir mais disposto vá juntar-se aos outros. Quero que esteja tão preparado quanto seus companheiro, e ficaria imensamente feliz se estivesse mais preparado que os outros. Tenho grandes expectativas para você, Quaere.
Assim eles voltaram para a sala de descanso, e mesmo que os outros não compreendessem por que estavam lendo, fizeram como o rei mandava.
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Em Busca Da Luz
Short StoryOs insetos de Valescuro são mantidos sob o comando da Rainha Sombria, mas quando uma nova luz surge na cidade, tudo irá mudar.