Quaere e Lógos quase não suportavam mais voar. Já haviam voado uma longa distância até a cidade de Beirágua, e agora, para fugir desta mesma cidade eles tiveram de se esforçar como nunca.
Deixaram a cidade e seus conflitos para trás, e apenas quando Quaere caiu no chão, exausto pelo fuga, eles pararam.
— Quaere - Lógos voltou até o companheiro quando viu que ele caira. Ela também muito cansada e ofegante - Temos que continuar.
— Preciso descansar - disse o vagus - Não estou acostumado a voar. Minhas asas não são tão fortes.
— Mas precisamos ir - Lógos insistiu.
Quaere engoliu as reclamações e o cansaço, e apoiando-se em um joelho forcou-se a ficar de pé.
— Então vamos - determinou - Mas caminhamos.
Lógos sorriu com aprovação.
— O importante é irmos em frente.
E caminharam em direção ao leste, como Lauden lhes disse para fazer. Buscavam encontrar o córrego, mas depois de uma hora de caminhada se depararam com um alto e denso matagal. Olharam em volta, mas o mato crescia até se perder de vista. Uma breve olhada por entre as longas e altas folhas de mato mostravam que aquele lugar era escuro e nada convidativo.
— Contornamos? - Quaere perguntou.
Lógos avaliou o lugar à sua frente. Não lhe agradava a ideia de entrar ali, mas…
— Não temos tempo - Lógos respondeu - Vamos perder muito tempo contornando. Como estão suas asas?
Quaere testou as asas, mas elas mal se moveram.
— Preciso de mais descanso.
— Então vamos em frente - Lógos decidiu - Se estiver descansado enquanto atravessamos, podemos levantar voo e ir por cima.
— Tudo bem - disse Quaere, já retirando a espada do cinto e seguindo à frente de Lógos.
O matagal era tão sombrio quanto previram. Ali o mato crescia rente um ao outro, dando ao local um ar fantasmagórico. Tão fechadas eram as folhagens, que nem mesmo sentiam uma lufada de ar para espantar o seu calor.
Já estavam andando por duas horas dentro daquele matagal, e Quaere começava a sentir que devia se esforçar novamente para tentar voar, pois não estava gostando daquela escuridão e do silêncio. Até que de uma hora para outra reencontraram-se com a luz.
Foram sair em uma clareira onde o mato não crescia da mesma forma. Ali havia espaço para a luz entrar e para o vento transitar. Mas, por mais que o brilho do sol e a deliciosa brisa fossem bem vindas, o que viram os deixou cheios de dúvidas.
— Que lugar é esse? - perguntou Quaere.
— Ora, eu conheço a Floresta de Gaia tanto quanto você - Lógos respondeu.
O que encontraram foram amplas ruínas feitas de pedra. Havia colunas desgastadas e rachadas, sem teto para que sustentassem; paredes de casas estavam pelas metades, quando muito, e era evidente que longas ruas existiram naquele lugar, mas agora tudo que restava delas eram pedaços esparsos de calçamento rachado e semi-encoberto pela terra.
— Está brincando - disse Quaere - Ninguém conhece a Floresta de Gaia menos que o povo de Valescuro.
— Eu conheço a história - Lógos se defendeu enquanto olhava em volta - Mas o que eu sabia sobre o seu território foi de pouca ajuda quando cheguei ao seu mundo - parou, observando o que parecia ter sido uma ampla praça antigamente, com uma fonte de águas no centro. Mas a fonte há muito se secara - Ouvir falar e vivenciar são coisas completamente diferentes.
— Lógos! - Quaere chamou e a fada seguiu na direção em que ele corria.
Estava indo na direção da maior das ruínas. Havia paredes despedaçadas, colunas tombadas e cacos de telhados para todos os lado. Uma grande torre ainda resistia, alta e rachada, com musgo crescendo em suas paredes. E junto a base das ruínas do que antes fora um imponente castelo; entre pedras tombadas e espalhadas, estava uma velha libélula, jogada junto a uma poça d'água, fitando o próprio reflexo.
— Oi, senhor! - Quaere envolveu o estranho nos braços, segurando sua cabeça gentilmente - O senhor está bem?
— O que? - a velha libélula perguntou, confusa - Quem é você?
Lógos se aproximou, reparando o quão acabado aquele homem estava. Apenas uma de suas asas continuava presa ao corpo; uma das asas encontrava-se solta, boiando na poça d'água e não havia sinal das outras duas. Viu que os olhos do velho eram baços, já não enxergava muito bem, mas quando Lógos se aproximou, arregalou os olhos.
— Há muito tempo não via nada tão nitidamente quanto te vejo - o velho disse, fitando Lógos - Veio para reafirmar a minha vergonha?
— Minha vinda nada tem a ver com você - Lógos respondeu.
— E por que mais seria? - a libélula insistiu - Afinal, retorna agora que minha vida se vai.
Lógos viu que era verdade. O homem não estava apenas velho; encontrava-se em seus últimos momentos de vida.
— Sim - ele prosseguiu - Agora que minha vida finda, você volta a mim como testemunha.
— Volta a você? - Quaere perguntou, confuso - Conhece ela?
— Há muitos anos ela esteve aqui… - ele parou quando um ataque de tosse o fez curvar-se - … esteve aqui e me disse que eu viveria para me arrepender - lágrimas desceram por seus olhos e ele baixou a cabeça, como se estivesse cheio de vergonha - E eu vivi. Vivi e me arrependi, como me foi dito.
— Você é Ozymandias? - Lógos perguntou, com os olhos cheios de assombro.
A velha libélula sorriu. Era um sorriso carregado de tristeza nostálgica, mas ainda assim um sorriso.
— Há muitos anos não ouço esse nome - voltou a erguer a cabeça, olhando para Lógos - Meu nome é minha vergonha. Perdoe-me, senhora. Lamento pelas coisas que fiz - as lágrimas não paravam de descer por seu rosto - Oh, céus. Eu lamento demais.
Lógos ajoelhou-se à sua frente. Ela chorava, assim como o velho. E tomando as mãos deles nas suas, disse:
— Fique em paz, irmão. Descanse. Tudo será diferente amanhã.
As palavras de Lógos carregavam tamanho calor, ternura e amor fraterno, que mesmo naquele derradeiro momento, quando a última de suas asas se desprendia de seu corpo e a vida o deixava, ele sorriu de aconchego.
Por alguns momentos Lógos esqueceu-se da pressa que tinham. Enterram a libélula, que partira em paz. Lógos fez uma prece por ele, e apenas então Quaere se sentiu a vontade para falar.
— Então já esteve aqui?
— Não. Ele apenas me confundiu com uma de minhas irmãs. Mas conheço a história dele. Este homem foi um rei, poderoso e orgulhoso. Seu reino cresceu tanto quanto seu orgulho. Ele destruiu templos e perseguiu pessoas. Ninguém podia ser adorado além dele, e a própria história lhe pertencia para que fizesse dela o que quisesse.
Quaere estava chocado. Olhou para o túmulo da libélula, quase sem acreditar.
— Como um rei termina desse jeito? - Quaere perguntou.
— Minha irmã trouxe a mensagem. Ele viveria para se arrepender. Veria a ruína de seu orgulho e que suas queda viria de suas próprias mãos. Muitas pessoas fugiram de seu reino e as que ficaram desconheciam a verdade. A história foi esquecida, e junto dela as tradições e costumes. Houve fome e guerra interna. Seu povo se destruiu o reino desabou. Mas ele viveu e viu o fim de tudo.
Quaere pensou sobre aquela história, e perguntou-se se esse era o destino reservado a toda a Floresta de Gaia se a Rainha Sombria conquistasse o que queria.
— Qual era o nome deste reino? - Quaere perguntou.
Lógos sorriu; um sorriso tão triste quanto o que o homem dera poucos momentos atrás.
— Isso não importa mais, não é? - foi a resposta que ela lhe deu.
Enquanto se retiravam das ruinas, algo chamou sua atenção. Eram os restos de uma enorme estátua feita a imagem do rei. Da magnífica obra restavam apenas os pés ainda presos à terra e os restos da cabeça, rachada e meio enterrada. Aos pés da antiga estátua, numa placa de bronze, estavam gravadas as seguintes palavras:
"Meu nome é Ozymandias, rei dos reis. Contemplai as minhas obras, ó poderosos e desesperai-vos!"
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Em Busca Da Luz
Short StoryOs insetos de Valescuro são mantidos sob o comando da Rainha Sombria, mas quando uma nova luz surge na cidade, tudo irá mudar.