Dois - Angelle

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Está um clima agradável. O sol se põe no horizonte e aos poucos as trevas começam a tomar conta do céu. Eu poderia ser uma estudante do ensino médio observando o pôr do sol com os amigos em um acampamento nas férias de verão. Teriam barracas, comida e uma fogueira. Alguém tocaria violão e todos cantariam alguma música alegre em meio a risos. Histórias de terror seriam contadas e talvez eu sentisse algum medo. Mas essa não era a minha realidade. Estou em uma floresta, mas não para acampar.

A alguns quilômetros de onde estou, fica a cidade de Vinhedo. Antigamente, ela era conhecida pelas inúmeras plantações de uva e o forte comércio de vinhos. Hoje, é  uma das poucas zonas neutras que existem no mundo. Gente comum, vivendo uma vida comum, longe dos grandes centros e do reinado das criaturas da noite chamadas vampiros. É verdade que são poucos, mas ainda existem lugares onde humanos escolhem viver sem aceitar o domínio vampiro. A questão é se os vampiros realmente aceitam essa escolha. Por não ter relação com o governo vampiro, a cidade foi isolada do resto do mundo. O comércio de uvas e vinho foi extinto e se tornou uma cidade que vive da agricultura local e da hospedagem de viajantes que precisam passar por lá por algum motivo ou que querem, pelo menos por um tempo, lembrar como era a vida antes do "Tratado", um acordo firmado entre humanos e vampiros que determinou quais leis seriam seguidas para que houvesse a coexistência entre as raças.

- Senhorita, chegou a hora de desembarcar. - Diz o motorista parando o carro. Ainda faltam alguns quilômetros até a cidade, mas tenho que terminar o percurso andando.

Agradeço e desço do carro com minha bolsa e começo a caminhada. Faz tempo que não me afasto das grandes cidades e o ar puro me traz uma sensação de conforto. É raro ocorrerem ataques de Inferiores na zona neutra então é comum no verão os jovens saírem para acampar. O portão da cidade está logo a frente e enquanto me aproximo, me sinto entrando em um mundo de jogo. Diferente das cidades modernas que estou acostumada, a cidade parece um misto de idade média e anos 90. Como não há comercio com outras cidades, Vinhedo teve que se adaptar a usar os materiais que tinha a disposição. A maioria das casas são feitas de pedra com telhados de palha, não tem energia elétrica e as ruas são iluminadas por lamparinas dispostas em postes de madeira. É um pouco estranho para mim, mas as pessoas transitam de um lado para o outro sem se importar. Realmente a cidade parece ser pacífica. 

No centro da cidade, ainda existem algumas construções de alvenaria e até um ou dois prédios pequenos, vestígios de um outro momento da cidade. Esses prédios se tornaram pousadas e uma antiga casa de campo agora é a prefeitura. Entro em um dos prédios com identificação de Pousada da Diana. Mais uma vez, tenho a sensação de estar em um outro mundo. Apesar de por fora o prédio parecer uma construção comum, por dentro ele me lembra as tavernas dos filmes medievais. Várias pessoas bebendo e conversando, mesas de madeira e um balcão que parece ser um bar. Vou até a recepção que está a minha frente e uma mulher de uns 40 anos, branca, com olhos castanhos profundos e um olhar despreocupado me recebe.

- 5 moedas de prata por noite. - Diz ela concentrada em um livro e sem olhar para mim. - Se for nova por aqui e não entende como as coisas funcionam, procure a Central de Visitantes próxima ao portão da cidade e se informe. Você pode trocar comida, tecidos, e outras coisas úteis por moedas. Não aceitamos dinheiro de fora da cidade.

- Serão duas noites. - Digo entregando a ela dez moedas de prata. - E gostaria de algo para jantar está noite também. 

- Segundo andar. - Ela me entrega as chaves do quarto 202. - Duas moedas pela janta. Você pode pedir no bar ao lado. 

Agradeço e subo as escadas em direção ao meu quarto. O quarto é simples, com apenas uma cama e uma escrivaninha pequena, uma cadeira e um pequeno armário com alguns cabides. Observo a movimentação pela janela. Aparentemente a pousada também é um local bastante frequentado por moradores da cidade. Seria um lugar interessante para descansar nas férias. Respiro fundo e desço as escadas em direção ao bar. Será uma longa noite.

***

- O que uma garotinha como você faz em um lugar desses sozinha? - Um homem me pergunta enquanto se senta próximo a mim. 

- Você é um curioso ou alguém que gosta de garotinhas? - Pergunto enquanto mastigo um pedaço de pão. 

O homem ri. Ele é alto, musculoso, tem várias cicatrizes, cabelo grisalho e um rosto amigável apesar da aparência durona. 

- Um curioso, apenas. - Ele responde e pede uma bebida.

- Queria saber como é a vida em um lugar como esse. - Digo concentrada em minha sopa.

- E o que está achando?

- Bem, entendo porque as pessoas aceitam viver nos grandes centros seguindo as regras impostas pelos  vampiros. - Eu o encaro e digo com algum deboche. -  Energia elétrica, banho quente, carros e todo o conforto da vida moderna não parecem ruins. Deixar tudo isso para tomar banho frio e voltar a idade média não parece uma escolha inteligente.

- Então você é uma doadora? - Ele pergunta fechando a cara e se tornando levemente ameaçador.

Quando o Tratado foi assinado, uma das principais leis criadas proibia a caça de humanos por vampiros. Se alimentar de sangue humano se tornou um crime, a menos que a pessoa oferecesse seu sangue de livre e espontânea vontade. Inicialmente parecia ridículo que alguém fosse se oferecer para ser comida de vampiro, mas em pouco tempo o número de interessados só aumentou. Essas pessoas passaram a ser chamadas de Doadoras. Acontece que os vampiros mostraram que existiam benefícios em ser um Doador, como os melhores cargos nas melhores empresas e na política, um tratamento diferenciado sendo empregados (motoristas, cozinheiros, jardineiros, entre outros), e a possibilidade de algo ainda mais atraente para seres de vida tão curta como os humanos: a chance de se tornar um vampiro.

Essa nova organização social dividiu a humanidade em dois lados: um que abominava os doadores, considerando-os traidores da própria espécie e outro que considerava aqueles que se opunham como idiotas. Os vampiros pareceram não se importar com aqueles que não cederam, mas conseguiram fazer com que os humanos brigassem entre si. Assim, apesar da humanidade ser maior em números, todos ficaram tão divididos que se tornou praticamente impossível algum tipo de rebelião contra esse novo formato de governo.

- Não gosto da ideia de ser lanchinho de vampiro. - Respondo fazendo careta. - Me responda uma coisa, já que eu estou te respondendo a algum tempo. Se odeia tanto vampiros, porque deixou de ser um caçador?

Por um momento pude ver uma brecha na postura firme do homem. Ele claramente estava surpreso que eu soubesse sobre isso e por um momento tive de medo de ter exagerado.

- Como você?...

- A tatuagem. - Respondi com minha melhor cara de adolescente petulante apontando para o peito do homem. - Isso é o símbolo dos caçadores não é?

- Pelo visto as escolas de hoje em dia ensinam alguma coisa além de como puxar saco dos sangue sugas. - O homem relaxou. - Sim é o símbolo dos caçadores. Eu saí porque deixamos de ser caçadores de vampiros para ficar limpando a bagunça desses desgraçados. Não podemos mexer com aqueles que estão no topo, apenas limpar a sujeira de Inferiores descontrolados. No fim das contas, eu estava fazendo um favor para eles, já que eles mesmos desprezam esse tipo de vampiro.

- Parece difícil senhor...

- Richard. Meu nome é Richard.

- Me chamo Amélia. É um prazer conhecê-lo. - Sorri e estiquei a mão. O homem a segurou e diversos flashs passaram por minha mente. - Bem, vou me retirar agora. - Disse me levantando. - Tenho muito a explorar amanhã.

Me afastei com um sorriso, porém com muito esforço para me manter firme. Minha respiração ficou pesada e entrei em meu quarto aos tropeços. Lágrimas começaram a escorrer de meus olhos descontroladamente. Uma dor latente tomou conta de meu peito. Uma dor que não era minha, mas que vinha das memórias roubadas daquele pobre homem no bar. Richard era um guerreiro, um assassino e também um marido de luto.

A maldição Dos Cabelos Prateados - O Segredo De Angelle RoyOnde histórias criam vida. Descubra agora