Capítulo 02: A bela Madalena

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Entre as camadas de nuvens que, diariamente, velavam a imponente estrela do céu, raios solares teimosos encontraram uma brecha para se infiltrar. A luz dourada foi então refletida por um objeto incomum, um adorno coroando a cabeça de uma pessoa. Essa jóia não se assemelhava às coroas circulares usadas por rainhas e reis, que envolvem majestosamente a cabeça de seus portadores. Era algo muito mais belo. A coroa em si remetia à de uma santa ou àquelas encontradas em pinturas angelicais das igrejas católicas.

Lágrimas escorriam, não apenas dos olhos da multidão que formava um caminho majestoso para a passagem dessa jovem, mas também dos olhos dela mesma. No entanto, ao contrário da felicidade que as lágrimas comuns expressam naquela cidade, as dela eram um reflexo do sofrimento físico que ela vivenciava naquele momento.

Seus cabelos, da tonalidade mais próxima ao ouro possível, quase não se moviam com a brisa. Prendedores cuidadosamente dispostos seguravam os fios, evidenciando talvez a razão de seu desconforto. Mas esse desconforto era apenas a ponta do iceberg de sua insatisfação cotidiana. Suas vestes também evocavam a imagem santificada de alguém, não eram suas roupas usuais, mas sim trajes feitos de tecidos finos. Em uma época como aquela, poucas pessoas tinham acesso, ou sequer recursos financeiros para adquirir tais peças. E não era comum que ela as possuísse, não, era a igreja que a apresentava como uma jóia mais valiosa do que qualquer tesouro em sua própria cabeça. E não era apenas a igreja que via nela algo extraordinário, sua beleza era inegável. Sua pele perfeitamente imaculada, sem nenhuma marca, sua dentição natural, cuidada meticulosamente por horas, e suas características físicas reforçavam a ideia de uma beleza divina, segundo a própria igreja.

A imponente carruagem sob seus pés finalmente parou, exatamente em frente à majestosa igreja, durante aquele grandioso festival que se repetia anualmente. Ao descer da carruagem, a jovem chamou a atenção das pessoas desesperadas que tentavam tocá-la de qualquer maneira, invadindo diretamente sua zona de conforto, algo que ela detestava. Talvez a maioria daquelas pessoas acreditasse que, se conseguissem alcançá-la, seriam abençoadas, seguindo a típica ideia de tocar o divino. O desconforto era evidente, afinal, quem gostaria de ser tocado daquela forma invasiva? A sensação da fama poderia ser agradável para a maioria das pessoas, mas as consequências eram claras para a sensibilidade da pobre garota que nos é apresentada nesta história. Seu olhar foi imediatamente capturado:

— Madalena! — ecoou a voz do próprio padre, mesclando-se entre um tom de fala e um grito. E, de imediato, obteve sucesso ao capturar sua atenção.

— Oh, desculpe-me, padre! Minha mente estava em outro lugar — respondeu ela, com sua voz suave que muitas vezes a livrava de situações. E desta vez não foi diferente.

— Não se preocupe, entre apenas. O desfile chegou ao fim.

E assim, em um piscar de olhos, ela adentrou apressadamente o interior da igreja, enquanto os serviçais do homem santo fechavam as portas atrás dela. Logo foi recebida calorosamente por algumas freiras, que a abraçaram e sorriram, elogiando-a de diversas formas. Essas eram as únicas pessoas em quem a jovem podia confiar em toda a sua vida, as mulheres que estavam sempre lá por ela, exceto quando se tratava de assuntos que a igreja ou até mesmo o padre consideravam pecaminosos.

O tempo parecia voar, embora ainda tivesse mais papéis a desempenhar dentro daquelas paredes sagradas. Ela estava longe de ser uma freira, e nunca usava o "hábito" característico, é claro. Seu interesse em se tornar uma religiosa era nulo; a verdade é que seu sonho sempre foi aproveitar tudo o que o mundo tinha a oferecer. Ela almejava sentir não apenas o calor do sol em Portugal, mas também experimentar os segredos mais profundos que o mundo guardava, deslizando sobre sua pele. Queria conhecer o frio intenso, a chuva que raramente cessava, ou até mesmo se perder em imensas dunas de areia, como descreviam nos livros. A ideia de liberdade era irresistível.

Neste momento, a jovem desloca algumas folhas de seu caderno de anotações. Suas vestes são em tons claros, predominantemente branco, com um toque de azul singelo. Ela usa um vestido, porém sua saia não é extravagante como a das mulheres nobres, mas sim discreta e modesta. Não ostenta nenhuma joia, exceto por uma única peça: um broche de cabelo que prende seus fios dourados em um rabo de cavalo. É feito de ferro, com um rubi centralizado e delicadas asas adornando suas laterais. Um trabalho minucioso daquele que o criou. No interior do rubi, há um pequeno brasão, quase imperceptível a olho nu.

O sino toca e a imponente lua já preenche os céus. Velas estão acesas nos diversos corredores da igreja, iluminando o caminho a ser percorrido. Os relógios indicam que a hora de todos, incluindo as freiras, se recolherem está se aproximando. No entanto, hoje ela está cheia de animação, ansiosa para ver o mar, para tocar suas águas. Um festival é o momento perfeito para isso. Então ela espera, e a cada minuto que passa, o tempo parece se arrastar ainda mais, um reflexo claro da ansiedade que percorre o corpo da garota. Finalmente, o momento chega. Um sorriso extasiado se desenha em seu rosto enquanto ela caminha lentamente pelos corredores, silenciosamente. No entanto, ao chegar à porta, já há alguém esperando por ela. É uma das freiras. A aparição repentina da mulher mais velha causa um susto momentâneo, e o som é abafado rapidamente pela palma de sua mão.

— Não foi difícil adivinhar que você sairia hoje para aproveitar o festival, não é? — a voz rouca da senhora ressoou, alcançando os ouvidos da garota, que estava nervosa. Antes que pudesse responder, outra pergunta foi feita — Você sabe que não é apropriado para uma jovem da sua idade sair assim, não é? Apenas tem dezenove anos.

— Eu sei muito bem, mas o padre não me permitiu sair durante o dia inteiro! Eu só quero ver o mar, por favor, madre. Não vou incomodar ninguém! — Seus olhos verdes fixaram-se nos da mulher mais velha, olhos cativantes que, combinados com sua beleza e determinação, conseguiram suavizar a situação.

— Vá, vá! Mas não demore. O padre ainda não foi dormir e pode ficar irritado por você sair no meio da noite.

A garota agradeceu e com gratidão e partiu em meio à multidão. Ao contrário do que havia ocorrido durante a manhã, quando foi praticamente assediada por todas aquelas pessoas, agora ninguém parecia prestar atenção em sua presença. Talvez a combinação do fluxo frenético de pessoas, o alvoroço de alguns cidadãos em busca de atenção e os vendedores ambulantes gritando fosse a razão pela qual ninguém a notava. Mesmo sendo a mais bela e única naquela cidade, ela passava despercebida, e isso trazia um grande conforto para a garota. Não era uma questão de se considerar tudo o que diziam, mas momentos como esse eram raros. Sem perder tempo, ela começou a correr entre as pessoas, chegando rapidamente à areia da praia. Ela fez questão de tirar suas sandálias para sentir a textura da areia em seus pés. A sensação da areia fina entre seus dedos a tranquilizou, e ela estendeu os dedos para tocar a água do mar. No início, o frio a fez hesitar, mas logo a sensação se transformou em conforto, exatamente como ela havia imaginado. Tudo era ainda mais belo de perto.

No entanto, nada poderia ser tão belo e, ao mesmo tempo, amedrontador como o que se desenrolava no céu. Uma tempestade se aproximava em alta velocidade, trazendo consigo relâmpagos que iluminavam as nuvens. Aquela luz serviu como um aviso para que ela ficasse em alerta. Um sentimento de medo imenso se apossou dela, mas, ao mesmo tempo, aquilo trazia a beleza que ela tanto ansiava experimentar. Contudo, com um receio crescente, ela se afastou. Antes que pudesse voltar, porém, vislumbrou a silhueta de um barco sendo violentamente empurrado pelas grandes ondas em direção a um local mais afastado, mas ainda na praia. O que seria aquilo?

Continua...

O Cântico do GraalOnde histórias criam vida. Descubra agora