QUANDO TUDO VAI BEM, DESCONFIE!
Os minutos a seguir se deram como num passe de mágica.
Consegui fugir dele. Estava segura em casa. Certo, deixei a Cat lá, sozinha, mas ela sobrevive. Ao contrário de mim, que teria desfalecido se meus pés não fossem ágeis o suficiente e meus ouvidos surdos para os chamados de Cat as minhas costas. Para chegar a casa e ficar longe do alcance de qualquer coisa ou de qualquer pessoa, corri, mas corri tanto que teria ganho fácil a São Silvestre. Querendo ou não minha melhor amiga estava certa, eu era a culpada de tudo e precisava tomar uma decisão. Chega de lamuriar pelos cantos e confins tenebrosos da minha mente. Era tempo de parar de fingir e encarar a realidade.
Sabia o que devia ser feito. Primeiro, um belo de um banho. Refiz-me da choradeira e encarei o desafio à frente. Falar com meus pais.
Por incrível que pareça, foram bem compreensíveis. Contei-lhes sobre meu rompimento definitivo com o Lipe e mamãe ficou perplexa por eu acreditar que numa cidade daquele tamanho, ela, uma jornalista, já não soubesse do novo romance do futuro biólogo-ex-genro. Papai acrescentou que estavam aguardando eu me sentir preparada para falar sobre o assunto. Com certeza ele devia ter tido alguma daquelas conversas psicológicas com ela durante o dia. Mas, tudo bem, foi melhor mesmo que minha mãe estivesse amedrontadamente receptiva. Prometi que terminaria a faculdade e que tudo daria certo. Afinal, era momento de amadurecer. Dessa parte final eles adoraram, óbvio.
O fato é que estou bem mais tranquila agora, feliz pelo dia ter acabado para iniciar uma nova vida ao cantar dos primeiros raios solares. Certo, não seriam os primeiros raios solares, mas certamente seriam os meus primeiros raios de libertação. Após minha rotina noturna, visto meu pijama de algodão com estampa de vários ursinhos brincando em nuvens esparramadas pelo tecido. Quase, num impulso, pego a camisola de cetim rubro que o Lipe me presenteou no ano anterior. Qua-se. No entanto uso o resquício de sanidade que ainda me resta nesta cálida noite. A camisola deixaria metade da minha pele à mostra e meu corpo todo delineado, marcando bem as curvas, sem falsa modéstia, perfeitas. Afinal, é assim que temos que pensar. Em contrapartida o pijama me cobriria por completo, nada de sensualidade ou requinte, nem precisaria de lençol para me cobrir. Muito melhor que algo escorregadio, no qual a gente mal consegue se manter firme no colchão. Eu prezo pelo conforto esta noite.
Como de costume, faço minhas preces, ligo meu som portátil num volume quase inaudível, boto o CD com minhas músicas escolhidas para este fim, deito. Conforme meu pai ensinou, utilizo as técnicas de relaxamento, focando cada parte do corpo. Passo a imaginar um lindo campo esmeralda, suas flores multicor, a brisa suave que as faz dançar, o pôr do sol refletindo nas águas plácidas de um riacho e seu som delicado e gentil por entre as pedras. Tão logo já não penso em mais nada. Somente o cantarolar de um rouxinol, do outro lado, um bem-te-vi e vários beija-flores, tudo em profunda harmonia com o pica-pau escondido por entre os ramos das árvores, ressoando a voz do Lipe, que pronuncia meu nome. Retrocedo a música, volto o pé direito que adentrava a terra dos sonhos e desperto. Picapau? Lipe? Meu nome? Que insanidade é essa agora? Eu só quero dormir para abrir meus olhos para outro dia muito mais feliz que este. É pedir demais?
Repito para mim mesma, em uma linha de pensamentos, para esquecer o cara enquanto a outra linha lança mil interrogações contrárias. Quando um barulhinho seco se faz perceber na janela do meu quarto, interrompendo meus devaneios febris.
O som repete-se em intervalos curtos de tempo. Aproximo-me da janela e ouço claramente a voz do endiabrado do Lipe me chamando num semi-cochicho. Abro a tempo de vê-lo lançando uma pedrinha. Ao desviar-me cambaleio e caio na cama, a dois passos atrás de mim. Ele ri de nervoso. Quando volto, pede desculpas tão discretamente que apenas vejo sua boca se mexendo, nenhum som. De um modo brusco diz que precisa falar comigo e que devo descer ou ele sobe.
Na época em que namorávamos, na verdade desde que nos conhecíamos e seu corpo passou a permitir tal façanha, Lipe subia no muro e se lançava pela janela do meu quarto. Assim, passávamos horas conversando, confabulando, namorando e sempre chegávamos atrasados ao colégio. O que nos rendeu belíssimas notas vermelhas e conversas em reuniões de pais, mestres, diretoria e quem mais quisesse meter o bedelho nas nossas vidas. Nossos pais fizeram de tudo, tiraram os telefones dos quartos, confiscaram celulares, até o notebook o Lipe perdeu. Os genitores chegaram ao cúmulo de vigiarem o momento em que pegávamos no sono. Eu sempre dormia, mas o Lipe vitoriosamente vinha me encontrar. Pulava da sua janela para entrar na minha. Nossas casas eram de esquinas e ele não morava muito longe. Ah, sim, para melhorar as notas, passamos a estudar juntos também, de verdade.
Olho para ele lá embaixo e peço que espere um pouco. Vistorio meu quarto, tudo em ordem. E essa agora? No que eu estava pensando? Não podia deixar que entrasse. Amanhã seria um novo dia, um recomeço real e eu ia esquecê-lo de vez. Com certeza era hora de dizer não, basta!
Viro-me para fechar a janela e sou arremessada de encontro ao chão pelo corpanzil que voa. Gemo de dor, devido a um grito preso na garganta. A fúria que cresce é apaziguada pelo rosto angelical que me sorri sem graça, em silêncio, pede mais uma vez desculpas. Tenho total convicção que meu olhar lhe desculpa no automático. Em segundos estou consciente dos músculos firmes e macios, do peso e do calor sobre minha carne viva e um crescente desejo arde nas minhas veias. Parecem chamuscar e faíscas preenchem o espaço a nossa volta. Não estou louca, ele também quer. Minha mão direita, involuntária, desliza pelo tronco, tórax e peitoral e nossos lábios tórridos ficam lentamente mais próximos um do outro. A mão direita dele fica apoiada no chão para impedir que eu seja esmagada, deixa-me sentir o necessário, enquanto a esquerda com um toque delicado acarinha minha face, retira uma mecha de cabelo da bochecha, segue pelo meu maxilar e pausa no limite do lóbulo da minha orelha. Nossas respirações sincronizam num crescente. Seus dedos começam a exercer pressão na minha nuca. Sinto que me puxará para ele. De repente uma batida e a voz do meu pai do outro lado da porta.
— Filha? Está tudo bem? Ouvimos barulhos, posso entrar?
Desvencilho-me e me lanço demasiadamente violenta na porta, impedindo a entrada de meu pai. Olho espantada para Lipe, que me devolve o mesmo olhar. Arfávamos.
— Está tudo bem, a janela que abriu — faço gestos para o intruso ir embora — e um vento idiota entrou e derrubou alguns objetos.
Esconde-se na penumbra do quarto. Abro a porta, saio e fecho de novo. Meu pai me olha assustado.
— Desculpe o mau jeito com a porta. É que me sobressaltei com o senhor e suas batidas. — sorrio exageradamente atrapalhada. Preciso me controlar.
— Bati uma vez. — fala inquisitivo.
— Pois é, mas foi o suficiente e eu já estava nervosa com o som das folhas e do — demoro a pensar um pouco — caderno que caiu. — digo de supetão.
— O vento derrubou um caderno? — questiona desconfiado.
— Para você ver como foi forte. Imagina acordar com barulhos no seu quarto?! Quase morri do coração.
— Ótimo, então pode voltar a dormir.
— Certo. — respondo desajeitada.
Mas meu pai não está convencido e fica a me olhar, espera que eu entre.
— Vamos, entre. Na verdade, colocarei você na cama, como quando era criança e tinha medo do bicho-papão, lembra?
— Imagina, pai. Isso é totalmente desnecessário. — balanço a mão no ar num gesto inútil para que volte para seu quarto.
— Faço questão. Vamos, abra a porta. — quer um flagrante. Mas, do quê desconfia tanto?
Entrou comigo aterrorizada. Era só o que me faltava. Depois daquela conversa toda de como eu ia amadurecer, da minha torcida pela felicidade do Lipe com a grotesca da Betina, de como estava consciente da minha realidade e do meu determinante e decidido empenho por um futuro promissor na graduação. Respiro fundo mentalmente. Agora meu pai estava prestes a encontrar o infeliz do Felipe no meio da madrugada no meu quarto. Essa não, é muito azar! E este dia que não acaba. Meu pai acende a luz, olha ao redor. Fecho os olhos pronta para o sermão.
CONTINUA...
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Destino Íntimo - Uma Jornada ao Pulsar de Um Estranho - Livro 1 - DEGUSTAÇÃO
FantasyVOCÊ ACREDITA EM DESTINO? NA LINHA DO TEMPO? E NA SUA VIDA? O INVISÍVEL É REAL O que fazer quando o mundo acaba? Esta é a questão que permeia na mente das duvidosas vidas dos sobreviventes de uma catástrofe na Terra.