2. A normalidade pode ser assustadora

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A NORMALIDADE PODE SER ASSUSTADORA

Desperto tranquilamente com a voz de minha mãe chamando Ninica, minha irmã de cinco anos. Antes que ela grite meu nome, dizendo que o café está pronto, coloco-me em pé e corro para o banheiro, antes que qualquer um entre. Fazer o quê, o mundo é dos espertos. A última coisa que ouço antes de fechar a porta é minha irmãzinha reclamando aos prantos e minha mãe bufando. Dei de ombros e iniciei minha rotina matinal.

Saio do banheiro cantarolando Levo Comigo, do Restart. No corredor, passo pela pequena criatura sentada no chão agarrada ao seu lençolzinho azul cor de céu, os olhinhos vidrados na porta. Com uma pontinha de arrependimento dou um beijinho em sua testa e ela corre para o banheiro. Vou para meu quarto e coloco minha melhor roupa para — como quem não deve nada a ninguém e quer impressionar a todos com seu charme casual e despreocupado — ir à banca de jornais da esquina.

Óbvio que demoro um tempo considerável me arrumando e assim que chego à copa para tomar o café da manhã, minha mãe, pesquisadora da Biblioteca Municipal da Uniaroeste e jornalista de J. Local (ou como eu preferia chamar na adolescência, J. Lixal, ela ficava louca. É, não fui uma adolescente, como diria, boazinha), abre o discurso.

— Aonde você vai?

— Passarei na banca do Guto para ver se tem alguma novidade interessante nos magazines.

— Ela vai perguntar do Lipe. — cantarola com sua vozinha aguda a pequena intrometida.

— E se for? Continua tomando seu leitinho que você ganha mais.

— Não precisa falar assim com sua irmã. Mais modos à mesa, mocinha.

— Será que ninguém percebeu que foi ela quem começou?!

— É uma criança e você não precisa dar tanta atenção ao que ela diz. Afinal, ela disse alguma mentira? — passa suavemente suas mãos na cabecinha loura e encaracolada de Ninica e lhe entrega um biscoito. Isso me irrita profundamente. Respiro fundo e tento me controlar.

— Ela especulou e por um acaso...

Ninica me interrompe, sai dando seus pulinhos altamente provocativos e continua a cantarolar pela casa.

— Ela ama o Lipe, ela ama o Lipe. Ela vai casar com o Lipe, ela vai casar com o Lipe.

Minha mãe sorri e balança levemente a cabeça. Antes que eu tenha um ataque de nervos meu pai, psicólogo, que mais observa para, quem sabe se Deus permitir, falar, sai da imersão do exemplar de J. Local e adentra no universo do café da manhã em família.

— Deixe-as tomar o café em paz, Patrícia.

— Se bem me lembro, apenas perguntei aonde ela ia.

— Mas isso a incomoda. — papai sempre vinha em meu auxílio.

— Ok, não digo mais nada. Não está mais aqui quem perguntou.

Enfim, poderia degustar meu café sossegada. Ledo engano o meu.

— Mas no dia em que essa menina sumir e ninguém souber aonde ela foi para agilizar uma busca, não vem dizer que foi por falta de perguntar. — usa seu tom provocativo habitual.

Silêncio. Meu pai beberica o último gole de café da xícara enquanto eu procuro o fim do universo para me jogar de vez.

— Ouviu, Júlio? — insiste mamãe.

— Ouvi, Patrícia. — meu pai diz com uma voz arrastada, daquelas que você sente as correntes pesadas roçando o chão e dobrando cada cômodo das artérias em um castelo vazio.

Destino Íntimo - Uma Jornada ao Pulsar de Um Estranho - Livro 1 - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora