Marília saiu do quarto 665, depois de ter trocado as cobertas e limpado o chão. O ar estava parado; o calor era sufocante, fazendo-lhe suar nas axilas e nas costas. Fios também deslizavam pelo seu rosto até o queixo, brotando das têmporas e do buço logo abaixo das narinas. Rugidos de trovões agitavam um céu cheio de nuvens. Eram 3:30 da manhã, mas só largaria o seu turno às seis. Em qualquer outro dia talvez estivesse cansada à esta altura, mas, por algum motivo "o Senhor havia tocado o coração do proprietário" – como Marília dizia – e este havia dado duas horas de intervalo para todos os funcionários. Marília achara estranho o serviço deixar de funcionar no meio da noite, mesmo que por pouco tempo, mas ela é que não iria reclamar: "Nossa! Que calor! – pensa ela enxugando o rosto com as costas da mão – parece que essa noite não termina nunca! Glória Deus! Será que ainda vai demorar pra chover?". Além de seus próprios pensamentos, ouvia seus passos e o rangido das rodas do carrinho onde trazia o balde, o esfregão, a vassoura e os outros apetrechos do trabalho. O lugar pareceria deserto não fosse, gritos de "ME FODE" ou "METE, NÃO PÁRA!" que lhe chegavam aos ouvidos, abafados pelas portas e paredes dos quartos.
Desde que começara a trabalhar naquele Motel, Marília era perseguida por um pensamento que nunca a abandonava: abrir a porta e encontrar um casal ainda na cama, transando. Embora ela soubesse que estes, ao saírem, sempre notificavam para gerência quando iam deixar os quartos e esta comunicava-lhe onde deveria ir, era sempre acometida por este pensamento e, durante os poucos segundos que duravam entre o momento que tocava no trinco e abria a porta para entrar no quarto, essa ideia aparecia-lhe com a força de um ato que estava prestes a acontecer.
A verdade era que Marília não se sentia confortável em trabalhar como camareira. Na sua forma de ver as coisas, os motéis eram lugares de traição, de luxúria, um lugar onde as pessoas pagavam para pecar. Não é que nunca tivesse frequentado um motel antes, mas, por mais que a parte mais consciente de sua mente lhe dissesse que tudo que se fazia ali fosse algo perfeitamente normal, ou que nada ali fosse da sua conta; que cada um é quem cuida de sua própria vida... uma parte mais profunda lhe emprestava a sensação de estar num lugar sujo, impuro, indecente e do que o que as pessoas faziam ali era errado.
Claro que isto não a impedia de, quando saía com seu namorado, Agamenon, passassem a noite num motel depois de terem ido ao cinema ou à algum show, mas era um sentimento inevitável que experimentava quando andava naqueles corredores e o pensamento de pegar um casal em flagrante sempre se repetia. Agora, ao chegar à porta do quarto 666, ela sabia que aquela imagem se repetiria na sua mente mais uma vez.
Deteve-se no número.
"666, o número da besta-fera", pensou. Riu-se de si mesma e de como, alguns hábitos que tinha desde a infância, nunca a tinham abandonado, como essas pequenas associações mentais ridículas entre um objeto e uma ideia. Vermelho era a cor do pecado; 666 era o número da besta; gato preto, azar; ficar debaixo da mesa, nunca mais vou crescer... eram ideias que ela sabia serem absurdas, idiotas, mas que ainda insistiam em aparecer na sua mente através dos anos, da mesma forma que a sensação de estar num local "sujo", "errado", não a impedisse de ir até lugares como aquele quando estava com seu namorado.
"Era agora!", pensou.
Pega a chave e a coloca na fechadura da porta. Via o casal em sua mente. O lençol por cima deles, mal cobrindo seus corpos sem roupas (gira a chave da porta); a mulher por baixo, as mãos segurando-se nas grades da cabeceira da cama (abre a porta); ele está sobre ela mordendo seu pescoço como um predador atacando a presa... mesmo cobertos, ela sabe que ele está dentro dela, deslizando em seu interior enquanto move os quadris e as pernas dela presas na linha da cintura dele (começa a ver os primeiros objetos do quarto: o carpete, o bar, a cadeira), eles a olham, assustados e enfurecidos e ela mal consegue esboçar a vergonha e o sentimento de repulsa quando...
Não havia ninguém.
O quarto estava totalmente limpo, arrumado. Parecia que ninguém havia estado ali. Os lençóis estavam limpos e bem dobrados. O chão não tinha nenhuma sujeira. A T.V estava desligada e nada denunciava que alguém estivesse estado ali, além da luz que estava acesa. De súbito, ela nota um barulho quase inaudível vindo de dentro, talvez do banheiro. Era o som da água saindo da torneira. Algo a faz olhar para baixo: uma poça d'água vinha do corredor, espalhando-se pelo quarto, indo em direção ao lugar onde estava. Sua mente, mais uma vez, trouxe-lhe uma daquelas frases sem sentido e ao mesmo tempo tão imperiosas: "preciso desligar a torneira, a água tá derramando!" Ela mesma impressionava-se como aquele imperativo descabido acabou se impondo.
Seus passos eram apressados e ao mesmo tempo cuidadosos, tentava não molhar as sapatilhas que havia comprado naquela mesma semana. Naquele momento, a única coisa em que pensava era no enorme desperdício de água e de que ela precisava parar aquilo. Atravessa o quarto em direção à um pequeno corredor que já estava completamente ensopado, onde, ao final, ficava o banheiro, que estava com a com porta semiaberta.
- AHHHHHHH!!! MEU PAI ETERNO!!!! MEU DEEEEEEUS!!!! – diz aos gritos
Logo, a porta do banheiro se escancara e ela sai, caindo, sentada no chão do corredor, molhando-se. Levanta, e, ainda tropeçando, sai do quarto. No banheiro, há uma banheira que, ao contrário das antigas, é instalada no piso, como se fosse uma piscina de hidromassagem. A torneira ainda ligada, faz a água transbordar.
E dentro...
O corpo, inerte e sem vida, semideitado, a água chega-lhe até a barriga deixando os seios e o dorso para superfície, cobertos do sangue que saía do pescoço, descia pelo abdômen e misturava-se com a água. A cabeça virada para o lado, os cabelos molhados, um dos braços estava fora da banheira, enquanto o outro, junto com o resto do corpo, estava submerso. Ambos estavam com os pulsos cortados. Seus olhos estão abertos. São, grandes e azuis, de um azul claro e límpido. O rosto é jovem, talvez entre vinte sete e vinte oito anos. O maxilar quadrado. Os lábios finos. Os longos cabelos loiros e molhados emolduravam seu rosto, dando-lhe uma certa naturalidade quase vívida, apesar de já estar morta. Haviam marcas de equimoses e hematomas nos braços, nas pernas e no rosto.
Poucos segundos depois de Marília ter saído, a chuva cai sobre a noite abafada.
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O GRANDE IRMÃO OU A VERDADE SOBRE FERNANDA CLIFFORD
Misterio / SuspensoNuma noite chuvosa, o cadáver de uma mulher é encontrado num motel nos confins da Região Metropolitana de Fortaleza. O que ela estaria fazendo ali? Teria sido levada contra a sua vontade? Quais as circunstâncias de sua morte? Essas perguntas, soam a...