39. Desabafo

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Kurdis chegou à biblioteca arrastando os pés.

Que dor de cabeça! Prometo que nunca mais vou tomar tanto vinho!

Antes de subir, foi até o jardim de inverno onde havia uma fonte d'agua. Bebeu fazendo concha com a mão, lavou o rosto e molhou a nuca.

Bem melhor!

Por um instante, Kurdis parou, olhando para o vão de três andares que deixava um pouco da luz solar penetrar o local.

Eu nunca fui forte para bebida...

Um pouco antes de tudo mudar em sua vida, o incêndio que ele provocou e que trouxe Lorran para sua casa... Kurdis não tinha imaginado que perderia o contato, seu lar, seu pai... Em algum momento, ainda havia fio de esperança de revê-lo. Ainda estaria preso? Recordou-se de um jantar ocorrido poucos dias antes do incidente que mudara sua vida.

— Você não deveria deixar um rapaz dessa idade beber, Jan Mussak! — dissera Rollu, um comerciante vindo da distante Guin'uji.

Kurdis preesionou os lábios ao ver em sua mente a imagem de seu pai, recordar sua voz. Era um homem de postura ereta, nariz erguido, bigodes bem penteados. Ele fora sempre tão seguro. E de algum modo, gentil.

— Uma criança só aprende a andar, caindo, caro Rollu! Eu não era mais velho que ele quando tomei meu primeiro porre.

— Vá com calma, meu jovem. Isso aí não é suco de uva. — advertiu Rollu.

— Eu consigo beber tantas taças quanto meu pai!

Rollu e Jan Mussak riram muito daquilo. E Kurdis estava determinado a cumprir sua palavra. No dia seguinte, Kurdis acordou muito mal. Fortes dores de cabeça, enjoo terrível.

— Isso, meu filho. É o que chamam de ressaca. Sabe porque estou bem e você não?

— Não pai...

— É porque bebi duas vezes mais água do que vinho. É preciso diluir o vinho... Assim como é preciso diluir todos os males dessa vida. Acredite, você ainda os verá, em abundância. Venha, vamos beber água para diluir esse vinho que ainda está em seu sangue!

— Por que você não me disse isso ontem?

— Bem, filho. Há coisas que é preciso sentir na pele para realmente compreender. Nenhum livro de sabedoria, ou sermão, consegue suplantar a experiência direta.

O pai o conduziu até a fonte da casa e ali, disse para ele molhasse o rosto. Enquanto isso, ele próprio pegou água com as mãos e molhou a nuca do garoto.

— Assim vai molhar a minha roupa! — protestara o jovem Kurdis.

— Sim, é preciso molhar um pouco a roupa para curar uma ressaca. Assim como é preciso macular o espírito para eliminar certos problemas que ocorrem na vida. Não há ganho sem dor, e nem qualquer consequência sem causa.

— Eu não entendo, pai.

— Olhe para nossa casa. Você acha que ela sempre esteve aqui?

— Suponho que não. Um dia foi construída...

— Sim, e certamente havia plantas, árvores neste local. Talvez aqui, fosse a toca, a casa de uma família de vulpecinos. Mas tudo isso foi destruído, para que a casa pudesse ser construída. Nada de bom, vem de graça nessa vida, filho. Um bom comerciante precisa aprender isso, saber avaliar o valor das coisas. Sente dor de cabeça?

— Sim.

— Então agora, talvez, aprenderá a valorizar seu autocontrole. Ontem você se divertiu muito. Riu, embalado pela embriaguez do vinho, não é mesmo?

O Bruxo e a Foice SombriaOnde histórias criam vida. Descubra agora