Aquele foi um belo dia, não muito tempo atrás.
Lembro de uma magnífica paisagem selvagem, mas não lembro como cheguei lá, apenas sentia uma leve brisa sobre minha face e um suave odor percorria minhas narinas. Era um cheiro de flores, de mato, de água sobre a terra.
Lembro caminhando numa trilha, árvores me rodeavam, eu podia ouvir os pássaros gorjeando enquanto eu andava e pequenos animais se espiavam. Estava carregando uma mochila, um tanto pesada e meu celular começou a tocar, tocou todo o caminho. Mesmo que o som fosse desativado, a maldita coisa continuava a me estressar.
"Como isso ainda está tocando?" Me perguntei, mas já sem paciência retirei o aparelho do bolso menor da mochila.
Várias mensagens e ligações preenchiam a tela inicial, muitas delas me magoaram: "Que história é essa de escolher outra carreira? Sonhos não enchem barriga, Michele!", "O pessoal tá espalhando um rumor teu, cadê você?", "Quando você aparecer na minha frente, eu vou te rasgar toda, tás lendo isso, galinha?", "Filha, teu pai quer vender teus materiais, me manda preço pra eles!", "Oi 'bebê', te vi passando hoje, nem falas comigo, vamos sair qualquer dia, ninguém precisa saber".
Um ódio percorreu minhas veias, segurando-o com toda a força, acabei por jogá-lo o mais longe que eu pude. "Sanguessugas" Essa foi a palavra que saiu de minha boca, embora eu estivesse zangada, um rio de lágrimas desabou pelo meu rosto. Soluçava muito.
Passei dez minutos assim, a mochila jogada ao chão, minha cabeça entre meus joelhos. Sentia uma dor insuportável. Eu ainda podia ouvir os pássaros, porém seus cânticos estavam distantes. Estranhei. Eu queria ficar naquela posição pra sempre, mas uma senhora joaninha escalou minha calça e passeou pelos meus braços, o típico casco vermelho com pintas pretas decoravam-na. Ficou ali parada, parecia olhar diretamente para mim. De alguma forma, senti um certo ânimo, enxuguei minhas lágrimas, levantei e apanhei minha mochila. Continuei caminhando uma trilha que nem mesmo o destino eu sabia onde daria. Só desejei caminhar sem destino. Não queria voltar pra casa, não queria encarar meus pais, meus estúpidos colegas de classe, nem aquele doente que me olha quando passo. Estava cansada daquilo. O final da trilha dava pra o topo de uma colina, havia grama por toda a parte e algumas flores azuis, que agora suponho que eram Iris azuis. O céu estava bordado com algumas nuvens cúmulos, como pequenos pedaços de algodão em um pano azul. Podia ver a floresta. Era lindo.
Lembrei de alguns materiais que trouxe na minha mochila, alguns lápis de cor, pincéis, pequenos potes de tinta, era uma perfeita ocasião para pintar. Mas um cansaço incomum tomou conta de mim, minha visão escureceu e adormeci. "Acorde! Corra!", acordei com essas palavras, uma voz grave e roca sussurrou-as em meu ouvido esquerdo, embora quando acordei, não havia ninguém ali.
Tudo estava mudado, o céu estava preenchido com nuvens nimbo-estratos, escuras e carregadas de chuva. Ouvi alguns trovões ecoando no horizonte. Um vento muito forte sacudia meus cabelos e também as árvores, não podia ouvir os pássaros, não mais. Estava assustada. Me assustei mais ainda quando vi algo na floresta. A coisa estava lá, olhando pra mim, imóvel. Meu peito se movimentava bruscamente por causa da minha intensa respiração.
Quanto mais eu tentava me afastar, correndo, eu via a figura me seguindo. Não lembro sua forma, só sei que estava lá. Uma presença sombria que me seguia. Comecei a correr desesperadamente.
Não segui a trilha de antes.
Percorri por uma densa concentração de árvores retorcidas, sombrias e com semblantes maléficos. No final desse bosque, acabei perdendo minha mochila, ela tinha ficado presa em vários ramos com espinhos. Eu estava bem machucada, quase não conseguia escapar daquele inferno espinhoso. Minha pele estava toda arranhada, meu cabelo todo embaraçado. Meus pincéis, meus coloridos lápis de colorir, meus desenhos e pinturas tinham ficado para trás, mas eu não podia voltar pra pegá-los. A coisa ainda me seguia. Quanto mais ela se aproximava, mais medo, terror, agonia, eu sentia. Precisava correr.
Encontrei o caminho para minha cidade quando fortes rajadas de chuva começaram a cair daquelas sombrias nuvens. Corri até chegar na rua principal, onde tive uma surpresa. Todos pareciam ignorar o temporal, todos estavam andando e agindo como num dia ensolarados.
Eles não percebiam o lamaçal nas ruas, que sujava suas calças, desprezavam a chuva, todos estavam encharcados.
Jornais molhados, mochilas ensopadas. Aquilo era muito estranho. Eu estava em pé na calçada, só conseguia observar tudo, parecia encenação. Muitos passavam por mim, ninguém sequer olhou. Era como se eu estivesse invisível. Minha camisa vermelha estava em trapos, minha calça e sapatos estavam encardidos de lama e terra. A agonia voltou a me causar arrepios, agora eu podia ver a coisa, quando me irei.
Vestia uma grande capa, era preta. O capuz me impedia de ver se aquilo tinha um rosto, usava grandes botas de chuva e luvas nas mãos. A imagem era perturbadora. Mas o terror tomou conta de mim quando aquilo começou a caminhar em minha direção, podia sentir sua natureza maligna. Gritei por socorro, corri entre as pessoas, ninguém parecia ver. Ninguém me ajudava. Esbarrei num homem alto, de paletó e gravata com uma mala, me agarrei a ele, mas continuou caminhando.
Acabei caindo no lodo e na lama da rua. Levantei e continuei um processo cansativo:
Gritando, batendo em lojas fechadas, pedia ajuda, entretanto ninguém ajudava. Fui perdendo minhas energias. Desabei no chão. As pessoas continuavam a caminhar normalmente pela calçada. A figura continuava a andar em minha direção. Se aproximou, se abaixou. Segurou minhas mãos, numa colocou meu celular, onde várias outras mensagens haviam chegado.
Na minha mão esquerda esfregou três de seus dedos no meu pulso e lá surgiu uma borboleta negra com olhos nas asas, aquilo tinha surgido do nada, doía muito. Por fim, colocou um pingente em meu pescoço, no qual havia uma pequena esfera com fétidas e amargas ervas
O cheiro era insuportável.
Não pude ver seu rosto, apenas levantou e continuou andando. Levantei, mas não joguei meu celular fora, muito menos o pingente. Deixei-os comigo, até hoje. Ainda posso andar por esses vales urbanos, sem ser vista ou notada. Não sei se tudo daquele dia foi um sonho, mas nada mudou. Vejo pessoas conversando sem falar, ouvindo sem escutar, escrevendo letras que suas vozes nunca serão compartilhadas.
Sentada em um banco, nessa praça, ainda vejo o fluxo de pessoas caminhando pela lama sem notar, todas em seus círculos. Todas sujas pela tempestade, todas ainda molhadas. O peso de minha mochila, a dor da borboleta em meu braço, o cheiro horrível das ervas do pingente e o celular, ainda estão comigo, todos os dias. Ainda desenho, mas a paisagem não parece mais bela como antes, tudo agora é sombrio, tonalidades de preto e branco.
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Paredes Invisíveis (Coletânea)
Short StoryAquelas tuas palavras caíram sobre mim como meteoros súbitos na noite. A queda foi rápida, o barranco não muito profundo. A descida, porém, não foi das mais suaves. Qual são os preços pagos das lições aprendidas? É um risco que ocorre, Agulha co...