Fênix

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Olhos rosados para o mundo, coração mole aberto aos abutres, hipocrisia com os bons, confiança nos maliciosos; combinação perfeita, não?

Me custou bons longos meses pra tirar todos os punhais gravados nas minhas costas, as sobras agudas de falsidades mil.

Círculos de fogo se fecharam ao meu redor e não tinha outra opção a não ser fugir para o meu deserto. Quem poderia imaginar que eu iria encontrar menos escorpiões e serpentes por lá?

Foi um tempo dolorido e de recuperação lenta na sequidão árida, álcool e sal nas cicatrizes. Foram operações sofridas, constantes, aparentemente inúteis, porém necessárias.

Entrevei em posição fetal, despida, traída, desiludida.

Quem consegue habitar em um deserto por muito tempo logo aprende que se os dias podem ser de um fervor insuportável, as noites conseguem ser tão frias a ponto de queimar nos ossos; imagine o que, nessas condições, acontece com os retalhos que não cicatrizam facilmente, infestados de vermes persistentes.

Foi doloroso. Pelo menos eu tinha as estrelas, né? Minhas únicas companheiras na solitária, piscavam silenciosas para o refresco dos meus olhos avermelhados, eu só podia contemplá-las enquanto refletia. Em seu distante lumiar, elas desenhavam pra mim o filme de horrores que minha vida tinha se tornado. Vi tudo tão claramente. Onde estava minha fantasia de palhaça?

No telão estavam os indícios das apunhaladas nervosas com facas cegas contra minha pele descuidada, estilhaços invisíveis das explosões de sentimentos desregrados, além dos meus inúmeros abraços com cactos armados, só pela ilusão doce de flores miúdas dispostas em corpos espinhosos.

Após a realização vem o negar, aquele sentimento teimoso de comodismo que sempre quer nos levar de volta ao inferno de onde saímos, apenas pela pura inocência, e inercia, de que tudo poderá ficar bem de novo.

Mas não, o filme não pode se repetir de novo. Não, basta, uma vez é o suficiente, causou dor o suficiente, quem é que gosta de refilmagens? No auge do sol do meu Saara, eu finalmente queimei meus trajes de palhaça.

Nunca é fácil, né? Muito menos rápido. Foram precisas muitas enxurradas pra arrastar a podridão, enchentes de minhas próprias lágrimas, ao qual me peguei viciada em me banhar. Eu não tinha muitas visitas na minha solitária, afinal, por que não me afogar em piscinas de autopiedade, vergonha e ácidas de ira? Divertido!

Incontáveis noites mal dormidas, em puro ranço e em vingativos planos perdidas, coração em brasas, vulcão explodindo sob um solo morto, lista de nomes em vermelho sublinhados. A turbulência de uma tempestade parecia ter vindo pra ficar.

Contudo, nem tudo dura pra sempre, certo? A maioria das coisas não. Uma hora a poeira baixa, fogo em palha seca também acaba, mesmo deixando as cinzas escuras pra trás. Me restava varrer pra longa as fuligens depois do grande incêndio. Tive que me erguer como uma fênix renegada pelo inverno chuvoso de extensa duração.

Chega de brincar em casinhas de bonecas, tentando encaixar a vida em uma delas.

Nunca é fácil, né? Muito menos rápido. Os carrascos até podem dormir tranquilos, sedados por insensibilidade e ignorância, fantasiados por máscaras festivas, enquanto suas tochas e tridentes ficam escondidos embaixo da cama. Eles podem até fingir a tranquilidade, porém os fantasmas também os devem infernizar, assim como me atormentam. Os fantasmas perseguem a todos, são tecidos invisíveis e pesados, escorados em nossos ombros, vigilantes em nosso sono e atuantes nos nossos pesadelos, sempre alertas pela oportunidade de puxar um pé descoberto.

Eu tenho um bom punhado de assombrações que me acompanham, me sussurram desesperos, sugam meu ar no breu das noites, embaralham sempre meus pensamentos, me asfixiam com dúvidas.

Você aprende a conviver com eles. É preciso.

Dividida entre ser engolida e esmagada pelo assombro do passado e incapacitada, amedrontada e perdida no que poderia vir no futuro, aprendi a encontrar refúgio no presente, o único ao alcance das nossas ilusões de controle.

O circo de antes deu lugar aos sarais intimistas, sintonia calmante de violas e gaitas, organizados em campos imaculados. Nesses momentos em que se percebe a sutileza de brincar com palavras, beleza dos mínimos detalhes, apreciação pela sabedoria do silêncio. Troquei a ideia de plantar campos minados pela de vasculhar mapa de tesouros escondidos. Tanto a se descobrir e tempo algum a ser desperdiçado.

Temos sempre uma bomba relógio em nosso coração, pronta pra alarmar a qualquer momento. Tempo algum a ser desperdiçado.

Não é fácil, nem rápido. A persistência do vento pode corroer montanhas, gotas de água derrubam colossos.

Não precisa ser fácil ou rápido. Uma hora os remendos cicatrizam, a agulha é guardada à sete chaves, mas num lugar acessível, pois nunca se sabe quando precisa-se de uma nova operação.

Novos jardins são plantados, decorados e moldados. Semeei brotos de otimismo, mas sempre na expectativa de nascerem plantas carnívoras. Pétalas formosas precisam morrer para adubarem a terra, frutas pomposas necessitam cair e apodrecer para que uma nova planta nasça.

Vivendo no inverno, descobre-se a ânsia pela primavera. O deserto é reservado a calamidades. Ignoram-se os olhos feios, zomba-se da futilidade, dá pra encontrar almas mais verdadeiras. O número? Nem importa.

Deixa eles berrarem, deixe que esbanjem as máscaras, as demonstrações mais calorosas, os presentes mais pomposos. É tudo uma ilusão, tudo se consume com o tempo. Deixe que os palhaços continuem sorrindo em seus circos armados, castelos altos, as encenações são falsas de qualquer forma, assim como as largas risadas altas e tudo que basta é uma pequena fagulha pra queimar a montagem até o chão.

Enquanto isso, me recupero em minha cabana, hibernando, porém sempre alerta; se ousarem perturbar a tranquilidade duramente construída, minhas espadas estão escondidas no assoalho.

Só espero que saibam que, mesmo tranquilas, só movidas pelo vento, aparentemente inofensivas, as mais belas das rosas ainda terão espinhos armados por baixo para atrevidos desavisados ganharem a devida advertência.

Paredes Invisíveis (Coletânea)Onde histórias criam vida. Descubra agora