Pontes e Trolls

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    Eva mancava pelas ruas, as pessoas ao seu redor a encaravam com espanto e se afastavam. "Deve parecer que acabei de sair de um hospício" - Ela pensou - uma mulher com o cabelo desgrenhado segurando uma lâmina de vidro ensanguentada não é algo que se vê todo dia.
    Seus olhos queimavam e seu peito começou a arder, ela precisou sentar embaixo da marquise de uma loja para pegar fôlego.
    -Senhora
    -Moça, está tudo bem?
    -Ei, você quer ajuda?
    Uma pequena multidão começou a se juntar, mas a uma distância segura. Tinham medo dela.
    "Medo... de mim?"
    -Onde estou? - Eva perguntou, as pessoas levaram um susto, a voz dela saiu mais agressiva do que queria. -Onde? Respondam! - eu mostrei o pedaço de espelho.
    -Na Geórgia? - uma senhorinha de bengala falou com a voz trêmula, essa informação não ajudou muito. Pelo menos sei que não estou tão longe de Elfhame.
    -Se afastem! - a voz estrondosa veio de um megafone, acompanhada por uma sirene.
    O hospital tem seguranças, câmeras. Como eu fui burra! Claro que não adiantaria só apagar meu histórico, eles viram nas câmeras uma mulher matando um médico e fugindo, não importa se eles sabem o meu nome e quem eu sou, eles só precisam do meu rosto!
    -Merda! Vocês não! - Eva encarou a multidão tentando encontrar uma brecha para escapar. Não havia. -Então eu faço uma. - ela levantou em um rompante, usando a lâmina contra todos, algumas pessoas correram gritando, outras caíram no chão com o rosto sangrando.
    -Você, Pare! - um policial saiu da viatura.
    Eva aproveitou a confusão e fugiu. Sem saber para onde estava indo mais uma vez, não se lembrava dessas ruas, não eram familiares. Ela atravessava na frente de carros, quase sendo atropelada - Ah! - a sua perna falhou e uma dor se estendeu pelo corpo todo, a fazendo cair no chão, Eva olhou para sua perna, agora sangrando por causa de uma ferida que a atravessava.
    -Parada! - Agora eram dois policiais correndo até ela, estavam longe, isso a deu tempo.
    Eva se levantou, arrastando a perna machucada, ela continuou entre os carros, que buzinam para que a mulher sáia do meio da rua, ela não obedeceu. Ela escutou mais dois tiros, todos erraram o alvo, ela seguiu o caminho, correu o máximo que podia, passando por várias ruas, fazendo curvas repentinas para que os policiais a perdecem de vista, mas a perda de sangue a estava fazendo ficar tonta, a visão está turva, ela não conseguiria continuar por mais tempo. Até que ela ficou de cara com uma ponte.
    -Não! Não faça isso!
    Sua cabeça latejava, agora Eva estava debruçada na ponte, encarando o rio que passava por baixo.
    "O que eu faço?"
    Ela olhou outra vez para os policiais, agora mais perto. Ela não tinha outra opção.
    Ela pulou.
    Eva chegou ao fundo do rio, seu corpo era muito pesado, ela lutava para colocar a cabeça para fora d'água, não conseguia bater as duas pernas para nadar, e tinha perdido sua única arma na queda, o pedaço de espelho escapou da sua mão por causa da força da corrente. Ela voltou ao fundo outra vez, sendo jogada de um lado ao outro, perdendo o fôlego, se desesperando, com dor em cada músculo...
Até que uma dor lancinante tomou conta de sua cabeça. Tudo ficou escuro.

    -Mamãe? Mamãe? - essa voz...
    -Mamãe! Você disse que a gente ia no parque hoje, acorda! - Vivienne.
    -Vamos Mamãe, queremos chegar no pier. - essa é mais doce. Taryn!
Eu abro os meus olhos devagar. Minhas três garotinhas estavam paradas ao lado da cama. Crescidas.
    -Claro, já estou indo. - eu sorri.
    -Vamos mamãe, o pai já está no carro. Temos que ir antes que o monstro pegue a gente de novo. - Jude falou animada.
    -De novo?
    -É, você deixou ele pegar a gente. - Vivi me olhou, com um sorriso no rosto.
    Começo a escutar um arranhado na porta, como se algo tentasse entrar. A madeira estava estalando.
    -O que tem lá? - Perguntei para Vivi, mas quando vou olhar minha filha de novo, já não estava mais lá.
    -Acorda mamãe. - Taryn começou a puxar o lençol.
    Agora escuto resmungos e grunhidos vindo do outro lado, vozes que não conhecia. Eles se aproximavam.
    -Estou tentando. - quando eu voltou meu olhar para minhas filhas outra vez vejo que Taryn também não estava mais ali.
    -Mamãe! - Jude estava chorando. Eu não vou tirar os olhos dela, não vou perdê-la.
    A porta se escancarou, água invadiu o quarto, destruindo tudo, vindo em nossa direção. Eu pulei da cama e abracei minha filinha.
    A água nos engoliu, atingiu com força.
    Não consigo respirar.

    -Precisamos de mais madeira para a figueira. - meus olhos se abriram em pequenas frestas.
    Um velho corcunda com cabelos longos e brancos estava falando com um adolescente, ou melhor dizer... brigando.
    -Anda logo, eu tô com fome. Se esperarmos demais a carne vai ficar ruim. - a voz era de uma mulher que estava atrás do garoto.
Eles estavam muito ocupados para ver que eu acordei. Resmungando, cortando e quebrando a madeira para alimentar o fogo.
    Estava começando a Entardecer. Eu estava encharcada, deitada em um tipo de terra com lodo e pedrinhas, com uma ponte de pedra enorme sobre minha cabeça. Essa era diferente, era bem maior do que a ponte que eu pulei, mas ainda consigo escutar o barulhos dos carros e do rio. A corrente deve ter me trazido até aqui, onde a água acaba e a terra se acumula com o lixo, criando uma pequena ilha.
    Comecei a me arrastar.
    -Anda, Krull, precisamos de mais fogo. - o velho reclamou. - Eu preciso sair daqui.
    -Ei, Ei, Ei! Acordou! A humana acordou! - o rapaz com o maxilar enorme e sobrancelhas grossas apontou para mim enquanto gritava.
    Tentei me levantar, mas mal conseguia me mexer, então me arrastei, um braço na frente do outro, como um leão marinho tentando voltar para água, toneladas de carne gordurosa e indefesa, perfeita para canibais malucos.
    -Você disse que ela tava morta! - a velha que equivalia a seis de mim gritou.
    Eles estavam na outra ponta da ponte, longe de mim. O velho e o garoto começaram a correr e eu me arrastei mais freneticamente, desesperada, ofegante.
    "Para onde iria? Do que adiantaria ma arrastar, o garoto era enorme, uma hora vai me alcançar."
Me arrastei mais, já sentindo o Sol nas minhas costas.
    -Não! Ela está escapando! - um dos dois gritou.
    Já tinha saído debaixo da ponte, até que senti uma mão agarrar meu pé. Me virei e comecei a contorcer minha perna. O rapaz gritava, sua mão soltava fumaça e ficava cinza. Eu o chutei com a minha perna ruim, agora eu gritei de dor, mas consegui fazê-lo soltar.
    -Filho! - o velho agarrou o rapaz e o arrastou para a sombra.
Eram trolls, mas pareciam humanos. Devem estar usando glamour. A velha correu até o que devia ser seu marido e filho.
    O Sol, se tocarem na luz eles viram pedra. Mas o Sol não estará no céu para sempre, não vou conseguir fugir, quando a noite chegar eles vão me encontrar, trolls tem um olfato muito bom.
    -Volta aqui! - a velha só tinha um olho, o direito havia sido transformado em pedra junto com uma mecha de cabelo. Não consegui deixar de sentir pena, estavam desesperados, com fome, presos pelo Sol.
    Eu senti algo escorrendo pelo meu rosto, eu limpei com a mão e vi que era sangue. Eu preciso de ajuda e de um lugar para me esconder.
    Juntei minhas forças para ficar de pé, mas tudo que consegui foi ficar de joelhos. As criaturas ficaram inquietas por causa do barulho, sirenes estavam se aproximando, devem estar procurando a mulher louca.
    -Eu dou comida a vocês, se me esconderem. Vocês são trolls, não podem sair daí. Por favor - Eles se entreolharam, confusos. O glamour deles se desfez, a imagem humana deles se desmanchou como o reflexo em um lago com marolas e no lugar da família, surgiu três criaturas altas com pele cinza, grossa e rachada, com musgos e presas grandes saindo de sua boca.
    -Feito. - disse o pai, que continua corcunda mesmo em sua forma normal. Devem estar tão desesperados quanto eu.
    "A quanto tempo não comem?"
    Eu me arrastei de volta para baixo da ponte e os três me envolveram. Escutamos carros com sirenes passando sobre a ponte, fazendo poeira e pedrinhas caírem sobre nós. Ficamos ali mais um pouco, garantindo que eles já tinham ido embora.

    -Aí! - Orel estava passando um pouco de musgo que ele deixou secando no Sol no machucado da minha testa, o problema é que seus dedos eram ásperos.
    -Como vai achar comida? Não tem floresta aqui.
    -Eu posso sair no Sol, posso roubar alguma coisa. - quanto mais eu penso nisso, mais minha barriga ronca. Eu estava sendo alimentada por tubos até agora e minha barriga quer compensar os 4 anos sem comida decente.
    -Krull, põe mais lenha no fogo.
    -Tá bom pai.
    -Pronto, não vai mais sangrar.
    -Obri - ele resmungou. Me esqueci, já fazia muitos anos em que eu não pensava nessas regras. Sem desculpa, sem obrigado. -Não se preocupe, vou trazer comida. Pode confiar em mim.
    -Humanos são criaturas mentirosas. - disse Carla, ao lado do filho.
    -E feéricos são criaturas falsas e manipuladoras. Viu só, não somos tão diferentes.
    O troll sorriu enquanto andava até sua família.
    -Você é engraçada Pequena.
    "Pequena". Bom, para eles é o que eu sou. Esse nome vai servir, por enquanto.



















De volta do nadaOnde histórias criam vida. Descubra agora