AGORA COM SETE ANOS

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Alguns anos se passaram, muita coisa mudou, primeiro vamos falar
da mudança de casa. Meu pai, aos trancos  e barrancos, conseguiu comprar um lote de terra no bairro Parque Silva,  e aos poucos construir uma casinha. Logo depois de construída, passamos a morar no novo endereço. Minha mãe já tinha seis filhos, incluindo a mim, porém, vivos restavam apenas
cinco, o Manoel adoeceu e morreu.
Na nova residência as coisas não estavam muito bem, meu pai passou
a ingerir demasiadamente bebidas alcoólicas e se tornou alcoolista. É certo que por anos ele tentou parar, até participou de grupos com objetivo de deixar o uso abusivo do álcool, mas sem sucesso. Cada dia a situação só piorava. Lembro que naquela época passamos muitas dificuldades, não somente pelo fato do meu pai fazer uso abusivo do álcool, mas também financeiras, que de qualquer forma, era consequência disso. Antes da mudança de casa, ele trabalhava na fábrica, Companhia industrial de Algodão e Óleo - CIDAO, porém a fábrica fechou. Ele também trabalhou numa padaria, e devido à embriaguez acabou discutindo com o patrão, foi demitido.
Se eu falar que passamos um dia sem ao menos ter uma refeição diária, estarei mentindo, pois meu pai era um homem trabalhador, tudo
ele fazia para não deixar faltar o nosso alimento. Eu que sou assistente
social, sempre ouço dizer e agora repito a velha frase, "o problema dele
era a bebida".
Logo, meus irmãos começaram a crescer, e os mais velhos pararam
de estudar para ajudar na fabricação de tijolos artesanais. O trabalho era
muito pesado, eu tive a chance de uma vez ir deixar o almoço deles na arearia e observá-los.
Você lembra do patrão proprietário da padaria? Pois é, o sr. José
Maria Pompílio, nosso antigo vizinho no bairro Alto da Brasília, comprou uma fazenda,
por sinal meu pai havia trabalhado nela para o antigo dono, que
era o dr. José Euclides Ferreira Gomes Júnior, pai do senador Cid Gomes.
"O homem da escavadeira". Ao comprar a fazenda, o Sr. José iria  precisar de um vaqueiro. Modéstia à parte, o meu pai era um excelente vaqueiro. Assim ele foi contratado para trabalhar na fazenda. Até aí tudo bem. A família fez a mudança para o novo endereço. Lembra que a comunidade Pedra Branca fica aproximadamente 7 km de distância da sede de Sobral? Com isso eu teria que ficar morando na cidade com objetivo de não perder aula.
Naquela época, meu irmão Francisco José, trabalhava como jardineiro
numa casa no nosso próprio bairro. Provavelmente ele tinha a idade de oito a nove anos, e já não frequentava a escola. Sendo assim, minha mãe pediu a dona Tereza (alguns nomes foram mudados) para levar o Francisco e me deixar, já que o serviço era somente regar as plantas e fazer recados. e dessa forma, eu não perderia as aulas. Pois assim se deu, todos foram embora e fiquei no lugar do Francisco, com objetivo de não perder aula. As pessoas da
casa eram legais, porém eu sofria muito por parte da empregada, ela jogava toda raiva dos patrões em cima de mim, ela nunca me chamava pelo meu nome ... era muita humilhação por parte da Dorinha.
No turno da manhã, frequentava a escola, na parte da tarde eu cuidava
das plantas e fazia trabalhos que a Dorinha mandava. Eu até tinha esquecido desse episódio, mas quando começamos a escrever as lembranças vêm à tona. Antes nunca tinha me afastado da minha família, sentia muita falta, principalmente do meu pai. Minha mãe demorava a ir me visitar, e as poucas vezes que ela foi, eu dizia que queria ir para casa, então ela respondia que não dava para eu parar de estudar. Como aquilo me entristecia!
Até que um belo dia, depois de tanto sentir falta da minha família, resolvi
fugir, ir embora para fazenda. Na época, eu sabia que um tio da minha
mãe vinha a Sobral deixar o leite no seu jumentinho de cargas, então fiquei esperando por ele na casa da D'Lurdes, que comentei aqui, na rua Rio de Janeiro. Não via a hora dele chegar e partirmos, pois temia andar naquela estrada arrodeada de mato. Fui com ele até certo ponto  próximo à fazenda, depois segui meu destino sozinha. Cheguei na fazenda morrendo de medo da minha mãe brigar, entrei até a cozinha, ela se assustou ao me ver, e logo
perguntou: "com quem tu veio? "Respondi: "com o tio Carrin". Eu já tinha nove anos de idade.
Com poucas horas, o carro da dona Tereza riscou na porteira daquela
fazenda, ela não sabia o caminho, até porque ela era de outro estado, mas
como diz o ditado "quem tem boca vai a Roma" e assim se deu. Quando ouvi o barulho do motor do carro corri e me escondi, pois temia que minha mãe me mandasse voltar, foi que felizmente ela disse que eu não queria mais morar em Sobral;  que ela daria um jeito para eu não perder aula. Nessa época eu estudava na Escola São Francisco de Assis.
Era meado do mês de março, quando fugi para morar com meus irmãos
na fazenda "Asa Branca". Pois hoje posso escrever e relatar os bons
momentos que passei lá, ter tido a oportunidade de interagir com todos na casa, tomar banho nos rios, no açude, correr nos matos, guiar carroça, subir nos pés de tamarindos,
cajaranas ou seja, poder deliciar aqueles momentos tão singulares. Ah, isso realmente não tem  dinheiro que pague.
Ressaltando que agora já não éramos mais seis, pois tirando o
Manoel que não estava mais entre nós, agora éramos sete filhos, incluindo, Ana Lourdes e a Maria do Carmo (Carminha). Passamos um bom tempo morando naquela fazenda. Até que por minha infelicidade, adoeci de pneumonia. Ainda lembro como se fosse hoje o dia em que minha mãe me levou para a consulta, e logo fomos encaminhadas para Santa Casa  de Misericórdias. Pois como relatei,
a comunidade ficava distante, e tudo era difícil. Foi quando de repente, reconheci uma amiga da dona Tereza, já mencionada aqui. Lembrei o nome dela e a chamei: "dona Isa", olhando para trás me reconheceu e perguntou: •o que tu faz aqui?" Respondi: "estou doente, essa é minha mãe ... " Não custou nada para elas começarem a conversar e combinar que quando eu melhorasse eu podia ir morar na casa dela para brincar com as suas filhas.
Depois que a dona Isa se retirou, relutei com minha mãe dizendo que não ia para casa de ninguém. Eu realmente temia sair do meu "paraíso", que era aquela fazenda.
Lembro como se fosse hoje a resposta de minha mãe, 'vai sim".
Passando algumas horas, ainda à espera da resposta de onde eu ficaria
internada, pois minha mãe preferia o hospital Dr. Estevão, por ser mais
próximo à comunidade onde morávamos. Foi então que a atendente nos deu a guia e disse: 'vai ser aqui mesmo na Santa Casa." Ouvindo a lamentação
da minha mãe sobre distância, aquilo, acolá, a dona Isa, que era uma pessoa influente, sempre levava os enfermos do município vizinho a Sobral, onde seu esposo estava como prefeito, simplesmente olhou para aquela moça e falou:
"Oh,  minha filha, encaminhe a pobre pro hospital dr. Estevão". Imediatamente, sem mais, a guia foi trocada e fui internada, onde minha mãe implorava. No caminho ao hospital comentei sobre o gesto de bondade daquela senhora.
Passei uma semana internada, já era hora de voltar. Toda feliz voltava,
lembro que o feriado dos "dias grandes", como diz a minha avó, Mãe Zeca, referindo-se à Semana Santa, aproximava-se e com isso era tempo de festejar o bom inverno. Meu pai aproveitava a chuva para plantar feijão e milho para o proprietário da fazenda e o que sobrava era para usufruto da nossa família,
assim eu não via a hora de chegar em casa, pois esse inverno prometia fartura.
Só para deixar claro, caso o inverno contribuísse para boa safra, a fartura
era boa, caso contrário, todos sofriam. Pois houve tempo de seca que a única
alternativa possível seria retirar os espinhos do mandacaru, cortar, misturar com a ração, com o objetivo de alimentar o gado.
Agora eu estava toda contente por estar novamente junto a minha família. Lembro que naquele feriado, recebemos a D'Lurdes e sua filha Lucimera, a  Neide, ( na pandemia , faleceu), todas da rua Rio de Janeiro. Aquele feriado dos "dias grandes"
foi só animação.
Passando alguns meses, para nossa tristeza, meu pai volta a fazer uso abusivo de álcool, não que ele tivesse parado; porém ele começara a se entregar mais uma vez ao vício. Recordo claramente que certa vez embriagado,
porém sem deixar para depois as responsabilidades, foi operar a máquina debmoer capim e acabou decepando o próprio dedo da mão. Para não parar a lida, meus irmãos, que já estavam crescidos continuaram o trabalho.
Resumindo para não estender tanto, só sei que a nossa situação só piorava,
o salário que recebíamos do proprietário da terra já não era o suficiente,
pois além do sustento da família, agora ele tinha que dividir com o vício.
Mais uma vez tive que sair de casa, e logo depois a família Patriollno
voltava para seu antigo endereço, à Travessa da Consolação, na Colina da Boa Vista, vizinho a casa do meu avô paterno, José Rodrigues, carpinteiro e fabricante de tamboretes.
Além do meu avô, que era antigo morador do bairro, também tínhamos
como vizinhos o Sr. Cleiton Medeiros (contador) casado com a sra. lvanilda,
que tenho muito respeito por essa família.
Lembra da dona Isa no hospital Santa Casa? Pois agora ela era a minha
nova patroa. Ainda na fazenda, vendo as dificuldades apresentadas, a
única alternativa era eu voltar a trabalhar. No início minha mãe me incentivava muito a ir para casa da dona Isa, porém, certa vez conversando com a dona
Tereza, ela falou que não achava uma boa ideia deixar eu "morar" com a famíliavdela. Relatou que dona Isa maltratava e chegava a bater nos seus empregados;
ouvindo esse relato minha mãe logo mudou de ideia. Porém,  agora eu
que desejava sair de casa. Na minha cabeça a dona Isa era gente muito boa, pois ela tinha até me ajudado na transferência do hospital.
Para ser bem sincera, quem é que na idade que eu estava, entre onze
e doze anos deseja sair de casa, e morar com quem nem ao menos conhece?
Infelizmente, a miséria de vida que me assolava não me dava escolhas. Pois olhava para um lado, o pai estava bêbado e muitas vezes maltratava minha mãe, do outro meus irmãos adolescentes praticando atos ilícitos, fumando, bebendo; eu amava meus irmãos e presenciar todo mal que eles faziam consigo mesmos, era o meu pior castigo. Você deve conhecer a música do Ney
Mato Grosso, que diz: "Se correr o bicho pega se ficar o bicho come". Será que o bicho era tão mau assim?
Nos primeiros dias, após minha mãe me entregar na responsabilidade
da dona Isa, eu quase não a via em casa; isso porque ela com seu esposo estavam muito ocupados com os serviços da prefeitura. Tenho fortes lembrançasvdaquela casa, aliás, uma mansão onde funcionou o SINE/IDT-Sobral (Sistema
Nacional de Empregos).
Pois sim, vamos continuar o nosso papo, lembro que aos poucos ia me
entrosando com as filhas da casa, hora a hora, pois aprendi até a guiar bicicleta.
Na casa havia vários empregados. Realmente agora minha única função
era entreter as duas meninas, que por sinal tínhamos a mesma faixa etária, e
na medida do possível, nos entendíamos bem. O meu único problema agora era a preocupação com os meus irmãos, não quanto ao que comer, pois além do que sobrava da renda do meu pai, a dona Isa nos ajudava financeiramente.
Sabendo que a dona da casa era "explosiva", eu fazia de tudo para agradá-la.   Assim, o tempo foi passando; pois eu ficava muito satisfeita em ver a minha
mãe ter com que se remediar. Lembro que certa vez, o Circo Garcia veio a
Sobral, eu cheguei até assistir o lindo espetáculo. Então, meu irmão Raimundo Nonato, agora com 16 anos, ficou tão encantado, que resolveu trabalhar cuidando
dos elefantes e na partida conseguiu fugir com o circo.
Pobre da minha mãe, nunca tinha viajado sozinha, além do mais o que
iria fazer para obter o dinheiro da passagem interestadual? Pois o circo estava em Teresina, capital do Piauí.
Sem saber o que fazer, correu, pediu ajuda a minha patroa, que sem
muito interrogatório, abriu a bolsa, não lembro a quantia em dinheiro que foi dada, mas lembro que não foi pouco.  Rapidamente dona Isa ligou para o seu sobrinho que morava em Teresina, relatando o caso. Na mesma noite minha mãe viajou, e ao amanhecer na capital do Piauí, o sobrinho no qual mencionei,
estava na rodoviária à espera dela.   Seu Francisco  levou- a para sua casa, foi muito bem servida  uma mesa de café como nunca ela tinha desfrutado. Logo após, os dois foram resgatar o meu irmão no circo.
Ao contrário do que as pessoas relatavam a respeito da personalidade
forte e do temperamento "explosivo" da dona Isa,  eu sempre
procurei focar nos seus pontos positivos, por vezes observei em seus olhos a pessoa secreta que de vero era ( na PANDEMIA DE COVID NOS DEIXOU SAUDADES) pessoa humana, e sensível à desgraça alheia, e isso so sim eu nunca esquecerei.

Opa! Se Cochilar,  o Chapéu Voa...Onde histórias criam vida. Descubra agora