Querida Anne.
Eu estou tão cansada. Só quero que toda esta dor pare, eu não consigo mais. Quem me dera fechar os olhos e nunca mais ter de os abrir. A tanto tempo que ando na estrada sozinha à espera de ser resgatada, mas estou a aproximar-me do precipício e ninguém me vem resgatar, ninguém vai impedir-me de cair.
Sinceramente já não me importo. Parabéns, eles conseguiram tirar tudo de que gostava na vida, já não existe nada que me faça feliz ou que me de forças para continuar a viver.
Só quero ficar na cama enrolada nos lençóis enquanto choro. Já não tenho força para sair da cama, para por um sorriso e enfrentar o mundo... já não tenho força para continuar a fingir que está tudo bem.
Que é suposto fazer? Ando sempre tão cansada e com tanta dor que acho que já não é possível ser ajudada.
Tudo que restou foi um vislumbre do meu antigo eu. Foi sendo degradada com o passar dos anos e a cada dia a dor aumentou, está na hora de atirar a toalha ao chão e de dizer a dor e o monstro da minha cabeça que ganharam.
Sem amigos, sem família, sem objetivos, sem felicidade, sem razão de viver.
Os últimos dias tem sido muito difíceis e parece que toda gente tem ignorado isso. Normalizam a situação e desmerecem a dor, só porque já passou um mês desde que ele se foi não quer dizer que não sinta falta dele. Pergunto-me se quando for a minha vez também foram isso, sofrer durante algumas semanas, depois esquecer tudo, atirar a dor para debaixo do tapete e fingir que a pessoa que se foi não era importante para eles. Será que eu sou importante para a minha família ou sou apenas um parente distante que só vem nas festas.
O meu avô morreu mês passado Anne e sito tanto a falta dele. Era a única pessoa com que podia realmente falar. Doe-me tanto ter de me despedir dele. E agora parece que tudo ficou tão escuro! Eu amava-o tanto! E disso poucas vezes em vida, se pudesse ter apenas mais quinze minutos com ele dir-lhe-ia tantas coisas. Dir-lhe-ia que foi a pessoa que mais ameai nesta vida, o quanto sinto falta de ouvir as suas histórias, a sua risada, as suas piadas (mesmo aquelas que não tinham piada, mas fazíamos de conta que tinham), do som da sua voz, dos seus abraços e beijos, nas nossas tardes a beber chá, da maneira como me chamava Laurocas apesar de já não ser uma criança, ou do simples facto de estar presente.
O meu avô era o maior de todos, foi a única pessoa com quem me abri totalmente e que nunca me julgou. Ele defendia-me sempre, não importava a situação e era o único que me deixava dar a minha opinião sobre qualquer tema tratando me sempre como uma adulta e sendo imparcial nos seus julgamentos. Foi literalmente o único a apoiar os meus sonhos. Gostava tanto de lhe puder voltar a segurar a mão, gostava de poder ter uma última conversa, um último abraço com ele. Gostava de lhe poder dizer que sento tanto a falta dele como necessito do ar para respirar.
Ter de lhe dizer adeus, foi a coisa mais difícil que alguma vez fiz na minha vida. Quando vi o caixão dele ser abaixado na terra senti o meu coração a finalmente terminar de estilhaçar. Foi como ser baleada numa artéria, uma dor impossível de se sobreviver.
Não devia ter sido assim. Tinha sessenta e cinco anos não era suposto ter nos deixado tão cedo. E o pior de tudo foi a maneira como me foi tirado. Um acidente de carro. Hah... se não fosse tao trágico teria tido até piada... o homem que passava a vida a multar pessoas por exceder o limite de velocidade, morrer por ir a conduzir acima do limite. Ele raramente o fazia, apenas em emergências. Talvez o pior de tudo foi que quando se meteu naquele carro ia todo feliz, a sorrir e tão contente pela chegada de um novo neto.
A minha mãe tava grávida e tinha acabado de dar à luz e minha nova irmãzinha quando aconteceu o acidente. O meu pai trouxe-me a mim e ao António para casa do nosso avô enquanto ia levar a mãe para o hospital. A Julieta nasceu nessa mesma noite, mas só soubemos na manhã seguinte. O meu pai veio buscar o meu irmão para ir vê-la ao hospital, ele estava tão entusiasmado que não parava de sorrir. Eu queria ir, mas ia ter naquela manhã um teste importante então combinamos que eu ia à escola fazer o teste e quando acabasse o avô ia lá buscar-me para irmos conhecer a Julieta. E assim foi. O António foi para o hospital e eu para a escola.
Felizmente o teste era na primeira hora da manhã logo não teria de esperar muito. Quando acabei o teste ele já lá estava a minha espera. Entrei no carro e sentei-me no banco de traz um pouco contrariada, o da frente ia ocupado com coisas para a bebé e para a mãe, mal sabia eu que isso seria a coisa que me salvaria. Tal como eu ele ia muito entusiasmado então como não ia ninguém connosco na estrada ele acelerou um pouco. Achamos que não faria mal, era apena um pouco acima do limite. Então num momento fatal virou-se para traz para perguntar-me qualquer coisa. Eu gritei para ele ter cuidado com o muro que estava a frente. Ele ainda tentou desviar o carro, mas ia com muita velocidade e no último segundo tentou trava-lo. Não sei bem se foi assim que aconteceu a minha mente parece que bloqueio partes do acidente. Só sei que acabamos por bater.
Não me lembro de muita coisa, desmaiei com choque. Recordo ouvir sirenes, pessoas a gritar, um barulho de uma cerra e ver luzes vermelhas e azuis. Acordei mais tarde na ambulância a caminho do hospital, o mesmo hospital onde estava toda a minha família a paparicar a minha irmã. Tinha cortes na cara, nos braços e pernas. Felizmente só tinha torcido o braço e algumas feridas e cortes espalhados pelo corpo. Tinha a cabeça a andar a roda e doía-me o corpo todo. É uma sensação horrível de se sentir.
A primeira coisa que perguntei foi:
- “Onde está o meu avô?”
Vi os socorristas a olhar uns para os outros com olhares de pena e tristeza estampados no rosto, só por isso percebi que algo muito grave tinha acontecido. Ninguém me respondeu, então não fiz mais perguntas, tinha de ver pelos meus próprios olhos.
Quando chegamos ao hospital já tinha a cabeça mais clara. Esperei que os médicos estivessem distraídos para puder escapar. Não foi muito fácil, custava-me muito a andar, mas mesmo assim fi-lo, precisava de encontra o meu avô custa-se o que custa-se.
Ainda tinha as mesmas roupas do acidente, ensanguentadas e esfarrapadas. Tentei procurar o mais sorrateiramente que pode, para não ser arrastada de volta para a quarta.
De alguma maneira cheguei a ala da maternidade e encontrei o quarto da minha mãe. Ouvi vozes animadas e alegres vindas de dentro, reconhecias de imediato. Senti uma enorme onde de raiva a passar por mim. Como se atreviam a estar tão contentes com a tamanha desgraça que tinha acontecido. Não me importava com o que quer que tenha acontecido comigo, importava, com o que tinha acontecido ao meu avô. De repente, não sei se foi fruto da minha imaginação ou uma voz que suou muita parecida com a dele, mas juro que ouvi a voz dele. Não pensei duas vezes abri a porta e entrei. Claramente foi um erro.
Quando me viram começaram logo a fazer perguntas:
- Olha que finalmente apareceu!
- Porque é que demoraram tanto?
- Vem conhecer a tua irmã!
- Como correu o teste?
Não repararam logo no meu estado, a minha cabeça andava a mil à hora, não estava a conseguir processar tudo aquilo, estava demasiada gente, demasiado barulho. Corri a sala toda com os olhos à procura da pessoa que tanto procurara. Não estava em lado algum. Mas foi quando o meu pai perguntou pelo avô e comentou que ainda não tinha passado por ali que senti todo o meu chão desmoronar. Comecei a ofegar e a entrar em pânico, comecei a olhar para todos os lados menos para os olhos das pessoas. Foi quando finalmente repararam nas minhas feridas, cortes, estado da minha roupa, no sangue seco e no braço ao ombro que começaram outra onda de perguntas.
- O que é que te aconteceu?
- Estás bem?
- O teu avô?
Senti as lágrimas a escorrerem pela cara, não aguentava mais, comecei a ver tudo à roda e de repente ficou tudo escuro.
Acordei horas mais tarde num quarto qualquer, com uma bata de hospital muito feia e coisas espetadas nos braços, estava ligada a várias máquinas. Ao meu lado adormecido numa cadeira estava o meu pai. Acordou quando me comecei a mexer e olhou para mim com um olhar aliviado.
- Felizmente estás bem! - disse ele enquanto pegava na minha mão.
- O avô? - foi direta ao assunto.
- Concentrar-nos-emos agora em ti, felizmente não é nada de grave. - O meu pai era muitas coisas, mas sútil de certeza que não era uma delas.
- Não mudes de assunto! O avô?!- elevei um pouco o tom, estava a começara a perder a paciência.
- Querida... é complicado.
- Então explica.
- Não te quero cansar.
- Não t preocupes com isso, fala, por favor.
Vendo que não tinha saída logo começou a contar.
Ao contrário de mim o avô não tinha saído com ferimentos leves. O embate tinha sido do lado dele e para resumir estava em coma. Exigi que me deixassem vê-lo. O pai no início recuou, mas apos voltar a insistir ele percebeu que ou ele me levava ou eu ia sozinha. Pôs-me numa cadeira de rodas, custava-me ainda mais do que antes a andar, e levou-me para o Unidade de cuidados Intensivos.
Foi uma das coisas mais dolorosas que vi na vida, o meu avô aquele ser sempre muito ativo, ali parado, ligado a tantas máquinas e a depender delas para viver. Não queria acreditar que era ele, não devia ser ele. O meu avô Joel que nunca ficava doente e que eu quando era pequena chamava de super-homem ali parado, a depender completamente de máquinas? Não, não era ele. Era nisso que queria acreditar. Numa ilusão da minha mente que me impedia de desmoronar por completo.
Nesse mesmo dia foi conhecer a Julieta, não foi o momento de enorme alegria que estava a espera. Quando entrei no quarto vi todos a olhar para mim com os mesmos olhares com que os socorristas me olharam: tristeza, pena e um pouco de preocupação. Deus! Como odeio aqueles olhares. Foi um momento curto apenas me deixaram segura-la por alguns minutos até que pedi que me levassem devota para o quarto. Não aguentava estar ali.
Nessa noite mal dormi, chorei muito. Estava sozinha ali, naquela sala pouco iluminada com outros doentes e médicos e entrar e sair constantemente. Só pensava nele e no que iria fazer se o perdesse.
Todos os dias em que estive no hospital, passei horas ao lado dele, a falar com ele, na esperança que me ouvisse e que acordasse para me abraçar, confortar e dizer que tudo ficaria bem. Mas ele nunca o fez. Mesmo após ma darem alta fiquei duas semanas em casa e todas lá estava junto dele à espera de uma coisa que nunca aconteceria. Com o passar dos dias escrevi-lhe um texto com tudo aquilo que sentia por ele, sobre tudo o que gostava nele, sobre tudo o que fazíamos juntos e como sentia falta dele. Um dia lio para ele quando ficamos sozinho, a meio do texto já as lágrimas me invadiam os olhos, quando terminei olhei para ele à espera de alguma reação, mas nada, então peguei-lhe a mão e beijei. Um dia depois declaram-lhe morte cerebral. Nunca esquecerem daquelas palavras: Hora da morte 13:42 da tarde.
O funeral foi dois dias depois, não li a carta que lhe escrevera e lera no hospital, essa era pessoal demais. Lera outra que escrevera na noite anterior.
Passado uns dias o meu pai levou-me ao médico e recomendou que eu andasse num psicólogo do hospital para acompanhar o meu estado mental após tudo isto. Disse que já frequentava a D. Madalena, mas disseram que não bastava. Fi-lo contrariada, fi-lo, ajudou em alguma coisa, não só a piorou por me obrigarem a reviver aquele momento vezes sem conta. Tentei pedir aos meus pais para me tirarem dali, mas eles acreditavam mais numa médica do que na própria filha.
Já se passou mais de um mês desde a morte dele e todos parecem ter superado a dor que para mim ainda nublava a cabeça, alma e o coração. Todas as suas atenções foram para a bebé. Não que eu me importe quanto menos gente a reparar em mim, melhor. Mas deixa-me furiosa que se tenham esquecido dele tão sedo.
Ele estava tão animado para conhecer a nova neta e gora nunca o faria, nem ela conheceria o fantástico avô que tivera. Devia ter sido eu não ele.
Se pudesse trocar de lugar com ele trocaria sem pensar duas vezes.
A minha vida nos últimos dias parece que está presa numa bola de dor que nunca rebenta.
O pedro é o único que me faz sentir alguma vontade de viver. Esteve ao meu lado em cada momento difícil. Foi o meu único amigo que me veio visitar ao hospital, que esteve ao meu lado no funeral, e que me tenta fazer sorrir e rir novamente.
Ao longo dos anos eu vi pessoas que eu gostava muito ficarem distantes, mais frias e menos brincalhonas. Sempre temi que o Pedro seguisse inconscientemente esse caminho, mas ele nunca o fez. Sempre esteve ao meu lado é por isso que o abandonas me custa tanto.
Ando a fazer mais cortes ou a magoar-me muito mais vezes agora. Precisamente quando já estava a deixar de o fazer isto acontece. É realmente uma merda.
Eu já não tenho vontade de fazer nada, tudo aquilo de que gostava perdeu o interesse. Estou muito cansada.
Desisti de lutar contra a correte, não vale mais apena, não importa quantas vezes eu me ponha de pé ela vai sempre ter mais força que eu e arrastar-me para o fundo.
É tão difícil ver todos felizes ao meu redor. Pergunto-me constantemente: Porque é que estou sempre com medo? Porque é que desconfio tanto das pessoas? Porque é que faço isto a mim mesmas? Porque raio estou sempre triste, zangada, irritada ou com vontade de chorar? Porque é que ultimamente tudo o que quero é que tudo este sofrimento acabe? Porque é que não consigo sentir algo positivo?
Talvez a morte seja a solução final para todos os meus problemas. Mas seria egoísta da minha parta suicidar-me, magoaria muitas pessoas ao meu redor, incluindo o Pedro, e eu não o quero magoar ou perder. Por isso decidi que apesar de tudo e de estar tão cansada vou tentar uma última vez. Tentar viver uma última vez. Procurar sentido em algum sítio. Era isso que avô cria, então vou tentar honrar uma última vez, custe o que custar. Vou tentar uma última vez.
A tua Laura.
Ps: deixo-te aqui a carta que escrevi para o avô quando estava com ele no hospital.
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As últimas memórias de uma adolescente morta
Teen FictionEnquanto tenta lidar com todos os sentimentos que vieram com a morte da melhor amiga, Pedro descobre que Laura deixou-lhe um diário um seis passagens que retratam o quão cansada e partida estava, levando por consequência a que se suicídasse. Um mis...