III. Bentinho e Capitu.

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Província de Gyeonsang, Daegu. 23 de setembro, 2002.

⁖ Im Nayeon.

Nosso dia de limpar a escola; juntas. Sentada sobre o peitoril da janela, bem me lembro do dia em que nos conhecemos. No fim das férias de inverno, durante as inscrições pro novo colégio — o começo do ensino médio. Desse dia aos atuais, eu tenho piscado mais lento quando perto de você. Pretensiosamente, mas nunca te deixando perceber, espero você sair da sala pra que eu possa sair também. Querendo que você me repare. Pra isso, até enrolo as meninas, que sempre terminam nervosas comigo. Sana já sabe. Myoui também. Só você não.

Nada meu te impressiona. Nunca funciona. Você não olha pra mim nem por um segundo. Nunca aceita um convite dos meus amigos pra ir a um karaokê, muito menos pra beber conosco. Nunca quer... nunca pode... nunca. A todo tempo com um livro em mãos, ou escrevendo alguma coisa. Contudo não tem cara de nerdola, não mesmo... tem uns olhos gentis, sabe conversar e sorri com facilidade; só nunca pra mim. O problema sou eu, menina do cabelo de coquinho?

Amarrada no que eu mesma penso, os minutos passaram de pressa. Tomei conta de mim quando te vi escancarar a porta que já tinha uma fresta aberta. Minha irís embranqueceu porque mirava você. Diferente das tuas — que nem me consideram dentro do raio da tua visão. De qualquer jeito, a maneira na qual você existe já me causa uma ebulição. Porque logo eu, que sempre gostei muito de mim, tenho me deixado de lado, pra te fazer me mirar também.

Disritmia. (dis·rit·mi·a)

substantivo feminino

Irregularidade ou alteração no ritmo.

Disritmia era a palavra. Sua voz disse meu nome voluntariamente por conta própria. Meus ouvidos e coração entraram em disritmia.
— Nayeon...

— Oi? — E finalmente saí daquela crise hipnótica, envergonhada. Sorridente. Empolgada. Com um frio imenso tomando meu estomago.

— Você limpa sua casa assim de cabelo solto, cheia de acessórios, all star branco...? — O quê? Misericórdia. Essa foi a pior primeira interação que eu já tive.

— N-não... — sua risada tomou o espaço, e absorveu todo o possível climão que consumiria aquele local.

— Você LIMPA a sua casa, Im?

— Claro que sim! — Sem esperar, respondi. — Por que a pergunta? Por acaso parece que eu não limpo as coisas, é? Eu hein... — meu semblante mudou completamente. Franzi a testa. E ela continuou a rir, talvez gargalhava até com mais vontade; então sorriu maliciosa, olhando fixa pras minhas pupilas. — Nem pense em responder, Jeongyeon. — Ordenei.

Sem que eu percebesse, o clima daquela sala havia mudado por completo. Um tom provocativo na sua risada me deixava curiosa. Pela primeira vez você deixou aparecer seus dentes bonitos pra mim. Apesar da situação um pouco constrangedora, foi uma boa primeira vez. Agora, até eu me pego rindo; contigo.

(...)

Contra a minha vontade — rapidamente a sala ficou bem limpa, entre nossas risadinhas paralelas. Não conversamos depois daquilo, apenas trocávamos olhares vez sim, vez não, e um riso fugia pelos cantos da boca, sempre partindo de ti. Contra a minha vontade, você havia ficado ainda mais interessante. Estávamos conversando sem dizer nada. Isso também era interessante.

— Estudou pra prova? — Já guardando os produtos, ela questionou, sem desviar do que fazia.

— A prova do paradidático?

— Uhum.

— Nem li. — Sorri. Ela esbugalhou os olhos e se levantou por completo.

— Como assim? O livro é um dos mais extensos do Machado de Assis! Você precisa pelo menos saber do que se trata, Nayeon! — Fiquei em silêncio. Já anoitecia em Daegu. — Você por acaso lembra o nome...?

— Dom Casmurro...? Algo parecido, não?

— Bom começo, pelo menos o nome você lembra.

— É, mas não estudei, nem li, na verdade... vou fazer a prova com uma benção divina. Tenho muitas. Uma delas foi ter sido escolhida pra limpar a escola com você hoje. — Indaguei. Sem medo. As palavras corriam da minha boca como quem corre uma maratona. Só saíram.

— Você é meio Capitu. — Lentamente ela veio até o meu lado e sentou-se na carteira ao lado.

— Quem?

— Capitu. O primeiro e único amor de Dom Casmurro, a grande razão pro Bentinho ter escrito um livro depois velho. — Prestando atenção, a deixei continuar. — Ela é uma grande incógnita. Há quem diga que ela traiu, que é dissimulada e mentirosa... mas também há quem acredite que na verdade Bentinho que era um bobão, um babaca.

— Por que eu me pareceria com ela? Nunca traí ninguém, poxa. — Rimos.

Ela não respondeu.

— Você quer que eu te mande um resumo do livro?

— Por favor.

— Vê se no próximo bimestre você lê. Os livros tem uma linguagem esquisita... às vezes a gente precisa abrir um dicionário do lado... mas são bons.

— Você não cansa de estudar?

— Um pouco. Costumo parar pra limpar a casa. — Não pude evitar o sorriso. Estava me provocando com aquilo mais uma vez.

(...)

Província de Gyeonggi, Incheon. 16 de agosto, 2019.

⁖ Im Nayeon.

Ela havia feito exatamente como eu pedi. Voltou, ainda que o sol já se levantasse e o céu ficasse cada vez mais azul claro. Voltou cheia de sacolas nas mãos, da lojinha mais próxima ao hospital.

Em minha própria respiração, apenas a deixei agir, sem dizer uma só palavra. Retirou da sacola, um achocolatado de agitar, um biscoito simples. Luvas e um cobertor. Prontamente esticou o cobertor sobre o meu corpo e, na mesa ao lado, deixou o lanche.

— Achocolatado sem lactose? — Perguntei.

Seus olhos emitiam pequenas vibrações. Sua retina não desgrudava da minha. Engoliu a seco e respirou fundo.

— Valor nutricional melhor. — Sentou se na poltrona perto da maca. Uma risada fugiu entre seus dentes: — Acho que comprei pensando no que a Srta. Im, dona da Entrance... ia querer. Ela não tomaria se tivesse muitas calorias. Esqueci que você...

Há mágoa nas suas palavras. No entanto eu sou incapaz de saber o porquê só tentando descobrir. Sútil, abriu o achocolatado e o pacote de bolachas. Não era o melhor dos lanches, mas era legítimo porque vinha de ti.

(...)

— "Era minuciosa e atenta (...) Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem." — Palavras de Dom Casmurro. A memória me trazia flashbacks como relâmpagos. — Estudamos muito pra essa prova. Você se lembra? — Ela afirmou com a cabeça. — Gyeonnie...

— Hm?

— Por que você disse aquela vez que eu era "meio Capitu"? — Apenas o vento fazia barulho durante alguns segundos. Ela olhava pras próprias mãos agora, mexendo em seus dedos.

— Por culpa dos olhos de ressaca.

Diante de Você - 2YEONOnde histórias criam vida. Descubra agora