A Mansão de Espelhos (Parte VI)

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Algo demasiado frio passou pelo garoto com tanta força que o jogou novamente para o chão - o barulho foi o mesmo que sua irmã havia lido na lenda. Vulto, detectou. “VAPO!” outro passou por ele, agora havia uma gargalhada fria e esganiçada no ar. O trincado aumentara, e a espinha de Tonico ardeu numa queimação abrupta. O vento majorou e esfriou com rapidez, fazendo com que suas costas, que ainda sangravam, ardessem. Um vendaval de vultos e gargalhos circulou o quarto escuro. Como num piscar de olhos, velas surgiram acesas. Os vultos cessaram, e, assustado, Tonico levantou-se; o pavor o invadiu de imediato, os olhos fixos nos espelhos, as mãos trêmulas e o sangue escorrendo por suas pernas esguias.

Nos vidros trincados das paredes, agora, eram visíveis chifres multiplicados sobre as cabeças de um homem e uma mulher de pele acinzentada, olhos avermelhados e carecas. Eles riam debochadamente. Os dentes tão afiados quanto uma estaca, a língua como de uma serpente e as orelhas pontiagudas. Ao lado de cada um encontravam-se duas crianças seminuas idênticas, que possuíam o olhar acinzentado e fuzilante e muitos pelos.

Tonico engoliu a seco. O garoto queria correr, mas viu-se paralisado e muito acovardado. A sensação que o costeava era como se estivesse à noite em um precipício no qual ao se jogar encontrar-se-ia com o outro lado da vida.

– Cosini... – fraquejou, em lágrimas.

A família Cosini continuava a rir, vitoriosa.

– O-o que vocês querem co-omi-igo? – Sua voz estava vacilante. Era audível o bater dos dentes do menino, uns nos outros, por conta da tremulação de seu queixo.  

“Seu corpo!”. Dito isto, a imagem dos Cosini no espelho trincado sumiu. Um vulto preto esfumaçado saiu como flecha em direção ao peitoral de Tonico. Contorcendo-se e gritando por uma dolência incontrolável, ele caiu de joelhos sobre o espelho.

O sangue, que escorria sem parar e se espalhava pelo chão, agora retornava inexplicável e assustadoramente para dentro de si. O chão estava limpo e a seiva do corpo do garoto parecia ter secado; ele estava lívido, com os lábios branco-vela. Levantou-se com sutileza e com os olhos fechados.

O vento aflava com fugacidade, fazendo a janela se abrir num estrondo terrível e as folhas secas entrarem no quarto de espelhos no momento em que o garoto deixava a aparência de inocente e puro e passava a ter um aspecto de estripador e vingativo. Os pés, assim como as mãos, esticaram-se de forma assustadora, as unhas alongaram-se e acinzentaram. Os ossos do corpo agora estavam mais que legíveis; de magro ele aderia uma aparência raquítica como de um chupa-cabra. Os cabelos cachearam-se e os olhos passaram de negros a branco-gelo. O garoto era jogado contra os espelhos. Enquanto se transformava, um líquido branco jorrava de sua boca e seus dentes afiavam-se. Pelos grossos e negros espalharam-se como pelúcia por seu corpo. 

Tonico, agora possuído pelos Conisi, saiu - desnorteado! - porta afora dando passos tão largos e pesados, que trincava os espelhos por onde passava. Ao dobrar o primeiro corredor avistou Anita noutra ponta, inerte, olhando para aquele monstro com desespero. Ela gritou por seus irmãos e correu corredor adentro: ondeava e batia-se contra a parede. A cada pisada que o monstro dava, ela soltava leves gemidos. A menina tropeçou em seus próprios pés e caiu golpeando os lábios no chão. Berrou mortificada.

O monstro pulou por cima da garota que arfou quando um estralo foi audível, não sentia mais o braço esquerdo. A criatura emaranhou sua mão, raquítica e suja, no cabelo de Anita e a puxou corredor adentro e escada abaixo. Ela se manava em lágrimas e respirava fortemente. Soltou um berro estriduloso que ecoou por toda a mansão, despertando a atenção de Jamesson que, lá embaixo, correu pelo casarão à procura da irmã. 

Anita fora jogada para cima e sua costela bateu contra o teto com muita força. Sem ar, ela caiu sobre o braço do monstro. Sacudia-se em busca de oxigênio para respirar. Tonico jogou-a novamente, porém, dessa vez para o chão. Ela desmaiou de imediato. A criatura cravou os afiadíssimos dentes em seu pescoço e foi dilacerando-a por completo; parte por parte de seu corpo. O cheiro de sangue exalou através do forte vento que as janelas deixavam entrar.

– Anitaaaa, – esbravejou Jamesson ao chegar ao corredor com um pedaço de madeira em punho. Ele ficou estagnado com a cena que presenciava: uma Anita inteiramente desossada e coberta por sangue. O garoto via os pedaços de sua irmã refletidos pelos espelhos.  

A fúria tomou conta do garoto e estremeceu seu espinhaço. Sem hesitar ele atirou o pedaço de madeira que segurava com toda força em direção ao monstro, acertando em seu rosto. O baque fez com que a criatura cambaleasse para trás. Encolerizado, o monstro rugiu muito alto; os lustres velhos e as velas balançaram e ele partiu atrás de Jamesson, que correu jogando todos os objetos velhos que encontrava pelo caminho contra a criatura.   

Assustadoramente, uma faca de lâmina prateada como o clarão da Lua surgiu na mão do monstro que estava embravecida. O garoto, amedrontado, corria corredor adentro. Quando ele parou, sem saída, o monstro, abanando a língua como uma cobra, mirou-o e em meio de gargalhadas atirou a faca. Rodopiante a lâmina prateada cravou-se no peito direito de Jamesson. Ele arfou, e abruptamente caiu sobre o chão ensanguentado e com os olhos lacrimejantes.

Com sangue de seu próprio irmão, Tonico, inconsciente, escreveu em letras garranchadas no espelho: A inocência pode nos levar para o buraco... CUIDADO!

A Mansão de Espelhos (Conto).Onde histórias criam vida. Descubra agora