Eu só queria estudar em paz

37 5 9
                                    

Aquele havia sido um dia de merda! O celular descarregou na madrugada, não dando o alerta que precisava, para que eu levantasse na hora certa. Resultado: Cheguei atrasado no serviço e levei um esporro do chefe.
Eu era o faz tudo da empresa de metalurgia, mas na carteira de trabalho, constava: Auxiliar de serviços gerais. Estava cursando o primeiro período de letras, português e literatura na Universidade Federal da minha cidade. O curso escolhido nada tinha a ver com meu emprego, que me servia apenas para pagar as contas, me sustentar e custear o material de estudo.
Sabia bem que com essa carreira, poderia ser um professor um dia. Isso para mim já era pensar grande! Aos vinte e seis anos, escolhi o curso da noite, mais voltado para aqueles que trabalhavam de dia. Meu sonho sempre foi cursar uma universidade, mas os parcos meios financeiros me impediram de fazê-lo mais cedo.
Agora finalmente realizava o meu sonho, mas aquele dia tinha sido uma merda e para completar, não entendia bulhufas da aula de Morfossintaxe e estudo da língua portuguesa. O professor falava arrastado e o sono começava a vencer a minha força de vontade.
Passada meia hora de aula, abriram a porta da sala num supetão, era uma moça que carregava várias coisas nas mãos, apostila, folha de horário das aulas, celular... completamente sem jeito.
Ela sentou-se ao meu lado, mas antes esbarrou com traseiro na minha mesa, derrubando minhas canetas.

- Desculpa... - abaixou-se para recolher meus pertences.
- Tudo bem. - Respondi sem paciência.
Ao me entregar as canetas, chamou minha atenção mais uma vez:
- Essa aula é de quê? - Sussurrou e eu franzi o cenho.

"Mas, que porra! Tá mais perdida do que cego em tiroteio" - pensei

Ainda ia respondê-la quando levei um pito:
- Aqui não é lugar de namorico, não, meus queridos!
Após o professor bradar, todos os alunos nos olharam.
- Nós não estávamos... ah, deixa, - puxei o ar com força - desculpe por atrapalhar a aula de Morfossintaxe e estudo da língua portuguesa.

Frisei a última sentença olhando para ela, a fuzilando com os olhos.

"Desculpa"- Foi o que li em seus lábios quase mudos e em seus olhos suplicantes.

Com a irritação súbita, causada pela garota desajeitada, senti evaporar o sono. Depois do fato vergonhoso de ser chamado atenção na frente de todos, até comecei a entender um pouquinho das explicações que o velho mal humorado desferia.
Em determinado momento minha visão periférica foi para o lado esquerdo, onde a colega apalermada estava. Notei que ela secava o rosto com as costas da mão.

"Será que está chorando por causa da vergonha que passamos? Parece um exagero...deve ser outra coisa..."- pensei
"Ah, que se foda! Cada um com seus problemas."- concluí internamente.

A porra da minha atenção agora estava novamente com ela e sim, ela chorava sem parar, mas silenciosamente. Tentava disfarçar, talvez tivesse êxito, se eu não fosse um imbecil, preocupado com a vida de quem não me dizia respeito.
O mestre antipático concluiu a aula, perguntou se todos haviam assinado a pauta e se encaminhou para a saída. Neste instante, me lembrei que a colega chorosa tinha chegado depois da lista improvisada com folha de caderno, ter passado por mim. Pensei em alerta-la, mas ela já havia se levantado e se encaminhava para a porta com bastante pressa.
Olhei para a sua cadeira e notei uma carteira esquecida. A peguei.

- Ei, menina! - Gritei, sem obter resposta, em seguida indo até ela que já saía da sala.

Observei que ao invés de ir direto para as escadas ou elevador, como os estudantes normalmente faziam, ela se encaminhou para a subida do terraço. Provavelmente estava perdida.

"Que garota mais louca!"- Pensei

- Ei, você esqueceu a carteira!

Ainda corri, tentando alcançá-la, mas no intervalo os alunos apinhavam os corredores em busca de banheiro e destino de lanches. Quando consegui subir para o terraço, constatei que chovia. Constatei também que a garota doida estava em cima do parapeito da parte dianteira do prédio.
Suas sandálias estavam no chão, assim como a pasta de materiais e bolsa. Senti o arrepio percorrer cada centímetro do corpo, minhas mãos começaram a tremer imediatamente.

"Ah, droga... Não acredito nisso, não faça isso...
Se eu chama-la, provavelmente se assustará e escorregará, indo de encontro à queda de pelo menos dez metros.
Mas a chuva está aumentando... ela vai escorregar, provavelmente não quer se jogar, pois está hesitando, talvez caia enquanto estou aqui pensando... seu imbecil, faz alguma coisa!"

Agi muito rápido, a puxei. Ela caiu sobre mim e eu sobre a poça imunda, que encharcou minha calça.

- Me larga! O que você quer? Quem é você? - Empurrou-me violentamente pondo-se de pé.
- Eu te salvei, caso não tenha percebido!
- E quem disse que eu queria ser salva?
- Por que caralho você quer se matar? Está louca? - Sim, eu berrei a plenos pulmões.
- Não te interessa, agora deixa eu concluir o que pretendia...

Virou- se novamente para a mureta.

- Não posso permitir. - Segurei sua mão escorregadia pela chuva.
- Isso não é da sua conta, já disse! - Tentava se desvencilhar.
- Se você se jogar, eu serei acusado... Provavelmente a câmera me filmou subindo depois de você. Será responsável pela prisão de um inocente.

Ela então puxou o ar e pigarreou.

- Não devia ter vindo atrás de mim...
- Você esqueceu sua carteira, quis apenas devolver.

Peguei seu pertence que descansava no meu bolso traseiro, encharcado da chuva. Ela olhou entristecida para o objeto.

- Me desculpa por te envolver nisso... Entenda, farei de qualquer jeito, aqui ou em outro lugar.
- Por quê? Você é tão linda!

Ela sorriu um riso triste.

- O reflexo do espelho em nada pode me ajudar...
- Ei! - uma terceira voz entrou na equação - Aqui não é motel, não... desçam agora, ou informarei a coordenação do curso.

O rapaz sisudo trajava roupa de segurança. Eu olhei para a louca, desvairada, suicida, que havia fodido com a minha noite. Tive vontade de empurrá-la, eu mesmo. Ela suspirou e pegou a carteira da minha mão e em seguida seus pertences jogados a esmo.

"Desgraçada" - pensei, assim que passou altiva, fingindo ignorar-me.

Fale agora ou cale-se para sempre Onde histórias criam vida. Descubra agora