Quando o sonho é doce, se acorda com gosto de sangue na boca

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A nossa amizade era leve, os assuntos fluíam facilmente. Livros, cinema, músicas, lugares, cheiros, os sabores das massas e das maçãs. Era como levar o banho de uma chuva fresca, numa tarde de domingo no parque. Me sentia normal, e ser normal era tão bom...
De repente eu era outra pessoa, vivendo outra vida. A estranha ausência de Benício, pouco me incomodava, contanto que tivesse o sorriso fácil do Athos, para iluminar a minha noite. Só lendo os seus olhos, já entendia seus pensamentos. Tínhamos uma dualidade.
Poucas semanas de amizade, valeram por uma vida inteira de bajuladores. Conversávamos de tudo, exceto... relacionamentos amorosos. Até onde sabia, ele não tinha namorada, mas era estranho, para mim isso pouco importava, e sinceramente, não mudaria nada se tivesse.
Nos juntamos em dupla para realização dos primeiros trabalhos acadêmicos. Vez e outra, uma colega de turma se unia-se a nós, compondo um trio. Rafaela era seu nome, e eu notava seus olhares furtivos direcionados a ele. Mas não havia uma recíproca. Meu amigo era muito lerdo ou talvez... seu foco de interesse fosse outra pessoa.
Descobrimos gostos em comum. Os livros de fantasia estavam no topo dos nossos assuntos. Uma noite, após a aula de Produção de textos acadêmicos, ele me entregou um box de três livros. A trilogia dos Jogos Vorazes de Suzanne Collins, que para mim, fã de Harry Potter, era novidade.
Ao folhear, notei que os livros estavam surrados e também grifados com cores vivas de marca textos fluorescentes.
- Não é pra todo mundo que eu empresto, então, tenha cuidado! – Alertou.
- Olha só, quem fala... O livro tá todo marcado. Nunca ouviu falar em post It?
- Coisa de mulherzinha...
- Ah, é, machista? – fiz uma careta – Dizem que literatura, também é “coisa de mulherzinha”...
- Sei, diz isso pro José de Alencar... Por acaso já leu “Luciola”? – mostrou os belos dentes numa careta, que me arrancou um riso involuntário.
- Não li e nem lerei... Não tenho paciência para clássicos.
- Quanta ignorância... Vou acabar emburrecendo andando com você. – semicerrou os olhos.
- Antipático... – imitei sua expressão .
- Analfabeta... – mostrou a língua.
- Meu Deus, Athos!
- Que é? – Irrompemos numa gargalhada única. Duas crianças rindo sem motivo.

Ele era apaixonado pela Katniss, disso tive certeza, vendo quantas vezes grifou o nome dela numa mesma página. Eu devorei o livro, era uma história  realmente viciante. Visualizei meu raio do Harry, tatuado no punho esquerdo e imaginei que um “Tordo” no direito, até que seria uma boa ideia.
Abri o aplicativo do WhatsApp e mandei a seguinte mensagem:

“Que tal, me encontrar debaixo da árvore forca?”

Ainda estava sorrindo e olhando a mensagem, quando a Vivian entrou no quarto.
- Tá fazendo o quê, maluca?
- Falando aqui, com o Athos... – analisei suas roupas de piriguete.
- Athos, Athos, Athos,  agora você só fala nesse cara...
- Ah, qual é? Ele é só um amigo da minha faculdade.
- Sei, tipo, amigo com benefícios ou um amigo cadeira?
- Hã?
- Ai,  para de ser lerda,  Ísis. Você sabe muito bem,  aquele amigo que serve pra gente sentar e relaxar um pouco...
A cara esquentou em frações de segundos.
- Nada a ver, ele é só meu amigo mesmo.
“Apenas amigos, mais nada!” – afirmei internamente para mim mesma.
- Tá, mas e o Benny,  ele sabe dessa amizade? Aliás, ele sabe que você mudou de faculdade?
- Provavelmente, né? Já que é ele quem paga a faculdade de medicina. Mas, está estranhamente quieto...
De repente me senti preocupada. Vivian me alertou que isso não era um bom sinal e que eu estava “brincando com fogo”.
Sim, isso era um problema que com certeza eu teria de lidar muito em breve, mas naquele momento, eu só conseguia pensar na Katniss Everdeen e no Peeta,  claro.
- Tá toda arrumada,  por quê? Vai onde?
- Ah, sim, vou sair... Sábado sem lei, você quer vir?  Bom... Se bem que eu não tenho hora para voltar.
- Não, não... na verdade quero terminar de ler os Jogos Vorazes.  Foi i o Athos que me emprestou. Sabe? Eu tenho que ler, para entregar na segunda-feira.
- O Athos de novo! Meu Deus do céu, não quero nem ver onde que isso vai parar... Então, amiga, não tenho hora pra chegar e provavelmente chegarei muito bêbada...
- Ah, cuidado com o “boa noite Cinderela”, tá?
- Contanto que não saia nada nas fofocas da internet... fui!
Rapidamente voltei os olhos para o celular. A sua resposta, me fez sorrir.

“Então, quer dizer, que você está viciada nos jogos,
hã?”
“Então, quer dizer, que você é apaixonado pela Katniss Everdeen?”
“Mas,  é claro!
E você, já se apaixonou pelo Gale?”
“Não, claro que não! É o Peeta, o meu preferido.”
“Ah, para!  Me diz, o que você viu naquele cara sem graça?
“Sem graça? Ele salvou a vida dela, você está louco?”
“Acho que você está confundido ou leu errado. Foi ela que salvou a vida dele!”
“Ele matou a fome dela,  jogou pão pra ela. Você esqueceu disso?”
“ Tá... um pão queimado, e jogou no chão ainda por cima, como se ela fosse uma porca!  O Gale sempre esteve ao lado dela, a ajudou desde o início. Ensinou tudo o que ela sabe,  se não fosse por ele, não teria nem sobrevivido nos jogos.”
“ Ah, eu não acredito nisso, Athos! Não acredito que você tenha o Gale como preferência...”
“Tá me estranhando, é? A minha preferência, é a Katniss, né?”
Deu uma pausa longa e em seguida concluiu o assunto:
“Agora para de conversa fiada e vai ler, “ Em chamas”... Estou ansioso para falarmos pessoalmente. Não se esqueça que temos que fazer o trabalho do Shakespeare na biblioteca.”

Fiquei rindo  e lendo a última mensagem.

“ Em chamas” – Pensei.

Era exatamente assim que eu me sentia naquele instante. Deitada em minha cama com o telefone na mão, imaginando aquele sorriso, a gargalhada leve... eu também tinha em meus lábios um sorriso bobo, suspirei ao imagina-lo,  então a porta se abriu num estrondo.  Aqueles olhos azuis me perfuraram como uma adaga.
- Tá falando com quem, Isis?
Tentei esconder o telefone após de trava-lo, mas foi inútil, ele já havia visto. Na verdade não tinha nada de comprometedor nas mensagens, mas para “ele”, tudo servia como estopim.
- Com ninguém, é só coisa da faculdade... – respondi.
- Ah, falando em faculdade, acho que a gente precisa conversar um pouco... – semicerrou os olhos – foi interessante receber do reitor, a informação do trancamento do curso de medicina. Então, me tira uma dúvida: de qual faculdade você está se referindo? Não importa... esse será o nosso próximo tópico, depois de resolver isso aqui.
Tentou tomar o aparelho de minhas mãos, mas eu o escondia nas costas.
- Eu falei pra me dar! – disse entre os dentes, puxando de forma dolorosa, o braço que segurava o telefone. Eu resistia bravamente – Sua Vagabunda! O que está escondendo?
Quando notei que quebraria meu braço, tomei a única decisão possível naquele instante. Passei o celular para a outra mão e o arremessei contra a parede com o máximo de força que consegui reunir. Ele espatifou-se.
A sensação de ardência no rosto, veio após o impacto oco, a dormência na minha face, dava a impressão de ter sido anestesiada, mas a dor lancinante me trouxe de volta do torpor momentâneo, assim como o gosto de sangue no interior da boca.
Notei uma gota escapulindo pela lateral do lábio e escorrendo até o pescoço. Olhei dentro dos seus olhos, confusamente cruéis.
- A culpa foi sua, você sabe disso... eu não queria, mas você me provoca...
Recolhi o sangue com dedo, o analisei atentamente. Rapidamente parecia coagular. Levei o dedo à boca e o provei. A lágrima que desceu sem autorização, não expressava tristeza, nem dor... Era algo mais impetuoso, vingança, que assim como aquele sangue, seria saboreada fria e coagulada.

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