“Entenda, farei de qualquer jeito, aqui ou em outro lugar.”
Esta foi a frase que regeu meus pensamentos durante o dia inteiro, me atrapalhando no trabalho e fazendo com que eu levasse inúmeros esporros do chefe.
Ela realmente teria coragem? Por quê? O que poderia machucar tanto, a ponto de fazer com que desejasse extinguir a própria existência?
“Mas, que porra! Que inferno! Será que dá pra esquecer dessa infeliz?” – a minha razão tentava tomar as rédeas dos pensamentos, inutilmente.
Ainda zapeei no celular, atrás de notícias de um possível suicídio de uma garota, com cara de maluca. Nada, graças a Deus ou infelizmente... Se ela morresse acabaria logo esse meu suplício.
Morreu hoje? Amanhã fazem dois dias... Assim seria melhor, né? Porra nenhuma! Eu precisava vê-la, saber que estava bem e que aquilo havia sido apenas uma TMP estrondosa.
Do meu lugar da sala, olhava na direção da porta, a aula ainda não tinha começado. Reparei uma menina que me sorriu, perguntou meu nome, respondi automaticamente, mais para a porta do que para ela.
“Deve estar morta, só pode! Daqui a alguns dias, acharão aquele belo corpo apodrecendo em algum lugar.”
Os pensamentos mórbidos ainda esbofeteavam meu cérebro, quando ela chegou. Era ela, mas parecia diferente. Suas cores estavam mais vivas, tão bonita que chamou a atenção de boa parte das pessoas de dentro da sala.
Vagarosamente veio em minha direção, sentando- se no mesmo lugar do dia anterior. Eu só percebi que a olhava sem parar, quando ela encarou-me especulativa.
Eu fiz menção de um parco cumprimento, com um sorriso de lábios cerrados e arquear de sobrancelhas. Ela respondeu da mesma forma, muda.
E assim eu pude continuar vivendo a minha vida, sem me preocupar com gente desequilibrada, que tem impulsos suicidas. Pelo menos era o que eu pensava, até resolver pesquisar uns livros antigos e empoeirados na biblioteca da faculdade.
Naquela segunda-feira, tivemos apenas uma aula e se eu fosse realmente esperto, iria para casa e dormiria cedo ou aproveitaria o tempo livre para entrar no Xvídeos, como um cara solteiro e na seca, teria feito. Mas, não, o Nerd que habitava em mim, resolveu que cheirar ácaro seria muito mais estimulante.
Lá estava eu, no terceiro pavimento da imensa biblioteca, lendo um exemplar bem antigo do “Machadão”, Dom Casmurro, quando a luz desapareceu. Um apagão? Instintivamente toquei o visor do celular, vinte e duas horas.
Como eu poderia ser tão idiota? Esqueci da hora com aquele livro velho. Desci as escadas aos berros, desejando que o zelador me ouvisse.
Dei de encontro com alguém, que foi ao chão, assim como eu. Era ela.
- Você?Ela me olhava atônita, na penumbra. Corri até a porta de grade, a espanquei um bocado. Chutes, sacolejões, não havia mais ninguém.
- Porra! Desgraçado! Abre essa porta! – exauri, recostando na grade.
Ao eu lado, ela soluçava com o celular na mão.
- Aqui não tem sinal, estamos presos.
Imediatamente olhei o meu, confirmando a informação. As paredes eram de pedra, muito antigas, assim como todo prédio histórico. A biblioteca no lugar mais inóspito do campus, era à prova de sinais e antenas.
- O que faz aqui?
- Estava estudando nas mesas ali do fundo, acho que adormeci... – puxou o ar com força.Esfregou o rosto, apoiou-se na grade, puxou novamente o ar.
- Socorro... não consigo respirar... – sussurrou.
Segurei seus braços trêmulos, extremamente frios. Respiração irregular, pulsação acelerada.
- Calma... Você está tendo um ataque de pânico.
Peguei seu rosto, capturei seus olhos com os meus.
- Olhe nos meus olhos e respire fundo... – abasteci os pulmões junto com ela – agora solte, devagar...
Repetimos os movimentos de inspirar e expirar por um tempo que não posso calcular.
- Obrigada por me salvar... de novo. – Sorriu, ainda cansada.
Eu ri.
- Dormindo na biblioteca... você é bem esquisita, né? – parei e franzi o cenho – Qual o seu nome?
- Sério? Jura que não sabe? – Agora, ela, que enrugada a testa.
- Por que eu deveria saber?
- Você não tem redes sociais? Internet? - arqueou a sobrancelha.
- Eu trabalho dez horas por dia, quase que em regime de semiescravidão e estudo à noite. No tempo livre que porventura aparece, ponho as leituras em dia...
- Que bom... – sorriu um riso terno.
- Acha bom, que eu trabalhe igual a um filho da puta?
Agora ela gargalhou.
- Sim, não gosto de ratos de internet... – fechou os lábios numa linha, para conter o sorriso lindo – Ísis, Ísis Ribeiro.
- Você é famosa, Ísis?
- Digamos que... somente para os desocupados, ratos de internet. – mordeu os lábios – E você, como se chama?
- Athos... Athos da Silva, famoso “faz tudo”, da metalúrgica do centro da cidade.
- Prazer... – estendeu-me a mão.
- Satisfação... – torci a boca – prazer, só na cama, baby.Ela arregalou os imensos olhos negros, puxando a mão. Eu gargalhei até chorar, a contagiando também.
- Foi só uma brincadeira... sua lerda.
- Brincadeira sem graça! Seu besta...Sentamos na poltrona dupla, perto do janelão que nos dava uma visão prateada, de alguma luz externa. Poderia ser a lua ou talvez uma lâmpada fluorescente, o que importava de fato, é que pintava seus contornos com um tom de azul escuro aveludado, tornando-a quase uma pintura viva.
- Fome? – Vasculhei a mochila zoneada, achando no fundo dela a metade de um pacote de recheado de chocolate, um tanto amassado.
Ela fez que não, mas seu olhar de cobiça a denunciava.
- Tá esfarelando, mas dá pra dividir...
Depositei uma mistura de farofa doce e biscoito recheado na palma da sua mão. Ela mandou para dentro da boca, deixando cair alguns farelos na blusa e poltrona. Rimos com o excesso de farelo e a falta de biscoito inteiro.
- Acho que é proibido comer aqui dentro...
- Acho que é proibido passar a noite aqui... – risos sincronizados.
Limpei o resto dos farelos caídos na minha calça e reparei de soslaio, a aliança dourada que repousava em seu anelar direito.“Noiva de alguém” – Pensei
Passamos um bom tempo falando de frivolidades. Filmes, livros... se Capitu traiu ou não, se Bentinho era gay ou não. Concordamos que Jorge Amado era um tesouro da literatura nacional. Discordamos sobre e-books serem melhores do que páginas que se amarelavam e acumularam poeira. Sentimos frio, dividimos o meu casaco e algum momento adormecemos.
- Deve haver uma explicação razoável para isso...
A voz grave do zelador, me arrancou do sonho doce e do abraço perfumado daquela Isis, a “deusa da insanidade”.
- A explicação, seu filho da puta, é que você nos prendeu aqui dentro, ontem à noite!
O sol já estava alto. Ela se levantou às pressas, desvencilhando-se do meu abraço.
- Você não vasculha o ambiente antes de trancar? – ele me olhava atônito, tentava ensaiar uma desculpa – Vou perder meu emprego por sua causa... tenho que correr.
- Saiam logo daqui ou EU perderei o meu emprego.
Antes de sair correndo feito um louco, mesmo sabendo que já estava dez minutos atrasado, olhei mais uma vez para ela e sorri, ela sorriu de volta. Só mais tarde, ao cair da noite e da temperatura, lembrei do casaco que ainda estava com ela.
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Fale agora ou cale-se para sempre
AdventureUm sequestro ou um salvamento? Precisa ler pra descobrir...