00.1 |Abertura

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Eduarda, point of view

Sempre foi um sonho para mim cursar psicologia e conseguir finalmente me tornar a profissional que tanto almejei ser, mas as coisas pareciam ser bem mais simples na minha cabeça na época, principalmente depois de terminar a faculdade pensei que realmente estava mais que capacitada para alcançar metas novas, e assim fiz.

A pior parte sem dúvidas foi prestar concurso devido a alta concorrência da área,  mas depois de feito e finalmente ter conseguido ingressar em uma delegacia num bairro afastado no Rio, o pensamento de que finalmente as coisas vão se acertar passa pela cabeça da maioria, mas não, isso não acontece e eu posso afirmar por experiência própria, a barra é mais pesada do que pode se imaginar.

Deveria ser meu terceiro mês atendendo policiais e outras pessoas em geral no Rio de Janeiro, o suficiente para afirmar que é apenas uma cidade maravilhosa para turistas, para quem realmente rala duro para viver aqui vai muito além de praias, clima e beleza natural, o Rio não é para qualquer um.

Volto para a realidade ao escutar algumas batidas suaves contra a porta de meu pequeno espaço de trabalho – que eu diria não ser um dos lugares mais aconchegantes para se realizar atendimentos ao público – mas estou sempre tentando deixar o lugar mais... Agradável aos olhos? Não sei se esse seria o melhor termo para descrever uma ambientação com uma mesa, duas cadeiras e um ar-condicionado velho que mal funcionava, além de alguns quadros pendurados pelas paredes e um armário que deveria estar ali à anos a definir por sua aparência envelhecida e madeira desgastada.

A porta se abre rangendo e causando incômodo para quem escuta, principalmente para Seu João, ex-policial militar que entra na sala fazendo careta e só para quando fecha a porta e o barulho finalmente cessa.

Ele chega um pouco suado, o calor costumava deixar os pacientes mais inquietos do que de costume, atrapalhando o desenvolver da terapia, então tento ajustar a temperatura do ar, milagrosamente funcionando essa manhã e refrescando um pouco mais nossa sala.

Ele era um dos vários pacientes que a situação em que vivia me chamava a atenção, mesmo sendo alguns dos casos mais comuns que você provavelmente vai ver nesse meio, ele foi um policial que dedicou anos de sua vida trabalhando para o Estado e hoje em dia tem fardos de mais em suas costas que o impedem de viver normalmente, resultando em um casamento fracassado e a rejeição dos próprios filhos.

É um senhor de 57 anos, o olhar abatido e as diversas cicatrizes nos braços e em algumas partes expostas revelam mais do que sua própria boca, em três meses de atendimento ele ainda tem relutância em me dizer muitas coisas, o que é comum em pessoas que trabalharam nesse meio, eles possuem dificuldade drástica de mais em falar, como se fosse melhor levar para o túmulo as vivências e traumas, mesmo sabendo que é necessário diálogo para obter resultados na terapia.

Quando acaba a meia hora de consulta, já que o atendimento público geralmente não passava disso, eu expiro fundo, como se dessa vez eu estivesse segurando o ar mesmo sem perceber conforme deixava a caneta de lado após terminar as anotações necessárias da ficha dele, exigia mais de mim do que eu poderia imaginar enquanto estava e fazia planos no período facultativo.

Após a saída de João, a secretária do lugar entra em minha sala sem ao menos bater na porta, Jana, ela deveria estar na casa dos quarenta a julgar pela sua aparência e modo de agir, seus saltos baixos faziam toques contra o piso de madeira do lugar e quando a mulher está próxima de minha mesa ela deixa alguns papéis empilhados e sai sem dizer muito, apenas o necessário.

Eram fichas novas, eu as pego com cuidado e as folheio conforme um semblante triste preenche meu rosto aos poucos, alguns – ou melhor, a maioria – desses indivíduos jamais conseguiriam receber ajuda psicológica devido a enorme fila de espera para atendimento.

Mas, algumas pessoas conseguem passar na frente das outras devido aos seus privilégios, a corrupção estava presente em todos os cantos do Rio e no meio da saúde não era diferente, a última ficha era de Roberto Nascimento, intitulado como alta patente do BOPE, o cara havia conseguido pular a fila de espera que só seria para final do ano que vem para começar ainda essa semana, um suspiro pesado sai de meus lábios.

Mais uma vez crianças que sofreram abusos, pais que perdem seus filhos e outras pessoas teriam que aguardar mais tempo na fila por causa de pessoas com privilégios dentro do Estado.

ULTRAVIOLENCE, capitão Nascimento.Onde histórias criam vida. Descubra agora