Apesar das barreiras profissionais, a conexão humana e a compreensão são inevitáveis e profundamente significativas.
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Eduarda, point of view
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O silêncio seria capaz de preencher a pequena sala por completo se não fosse interrompido pelo zumbido do velho ar condicionado, que se tornava cada vez mais notável com o passar dos segundos. Hoje o ambiente parecia desconfortável, se tornando evidente principalmente pela postura rígida de Roberto, sentado em uma das cadeiras, com a mandíbula apertada e uma expressão distante. Os olhos escuros do capitão vagavam por cada canto do local, evitando fixar-se em minha figura que percebia a maneira que suas pupilas se moviam pela estante antiga e acabava parando nos quadros na parede, como se esperasse que algum desses objetos pudesse oferecer respostas ou aliviar seu âmago.
Esse era o clima predominante quando ele começava a falar sobre seu passado, contando quem era o Roberto antes de se tornar quem é hoje. Filho de um tenente autoritário tanto no serviço quanto em casa, ele começava a desenterrar memórias com certa indiferença, mas o tom de voz traía esse sentimento de impassividade.
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— Com o moleque faço a mesma coisa, quando não tô longe, falo umas merdas. Igual ele fazia comigo, na maioria das vezes eu nem percebo quando começa, só quando já tô no meio. Pensei que ia ser diferente, que ia ser um pai melhor... — Ele está ficando com a voz cada vez mais baixa quase a nível de um sussurro, é como se admitisse que está preso num ciclo que nunca quis repetir, mas não sabe escapar disso.
A infância molda a psique e as experiências vividas durante esse período possuem um impacto duradouro na vida adulta, apesar de anos de estudo ninguém sai completamente preparado para o impacto que as palavras ditas por cada um dos pacientes acabará causando. Cada frase solta e cada detalhe ressoa com intensidade que muita das vezes faz com que todo conhecimento teórico adquirido se torne um nada, já que a compreensão vai muito além da teoria e diz muito sobre a humanidade que existe dentro de você.
O desconforto ainda estava presente, mas a atmosfera aos poucos foi sendo preenchida com uma compreensão silenciosa diante das palavras de Roberto, me deixando totalmente imersa no que estava sendo compartilhado, revelando a evolução que tivemos ao longo de diversas sessões, onde ele mal costumava falar. Como se guiada por um impulso inconsciente e quase imperceptivel, minha mão começou a se mover lentamente pela mesa, buscando a dele, até que meus dedos se estenderam em um gesto automático, tentando oferecer conforto além das palavras em meio ao mar de angústias ditas, um gesto que carregava um peso emocional significativo.
O toque foi breve, mas apesar da sutileza, ainda notório. Não demora para que eu perceba a maneira como os olhos dele agora se fixaram no contato, havia uma mistura de surpresa e algo indecifrável como se ele tentasse distinguir a sensação acolhedora causada pelo toque. O gesto foi tão natural quanto inesperado, um reflexo da empatia que havia transcedido a prática profissional aprendida.
O calor da palma causado pela proximidade logo se dissipa com a mesma rapidez com que havia surgido, retirei a mão com o mesmo cuidado com que a havia colocado e retornei à minha postura habitual apesar de perceber a marca silenciosa e complexa deixada no ambiente, mesmo que breve, o gesto carregava um sentimento de solidariedade e também um mútuo reconhecimento da dor e vulnerabilidade expostas hoje.
Dando um leve suspiro sinalizo que nossa sessão havia chegado ao fim, o ambiente antes carregado de empatia muda drasticamente à medida que Roberto se prepara para sair. Observo ele se levantar com certa pressa, e embora ainda ainda consiga ver a expressão de suavidade no rosto dele, é como se um processo automático ocorresse ao se dirigir à porta. Sua postura antes mais relaxada agora se endireita, os ombros se levantam e o olhar que antes revelava tristeza torna-se impassível. Antes de sair, ele me olha e se despede apenas com um aceno de cabeça, como se expressasse certa gratidão, mas também sinalizando que retornou ao seu papel habitual, o de capitão.
Ele vê a hierarquia policial como uma oportunidade para ter o reconhecimento e respeito que nunca teve de forma constante durante sua infância.
A porta foi fechada e permaneci sentada por longos minutos completamente imersa em um silêncio denso e carregado de confusão, como se estivesse me perguntando se havia ultrapassado algum limite profissional, apesar de já ter oferecido gestos de conforto e empatia a outros paciente embora não fosse tão comum, todos marcados pelo mesmo sentimento genuíno de oferecer consolo, mas foi como se dessa vez a sessão tivesse deixado um eco profissional quanto pessoal. Era como se o equilíbrio entre minha humanidade e meu papel como psicóloga estivesse em questão.
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ULTRAVIOLENCE, capitão Nascimento.
FanficEduarda é uma recém graduada em psicologia que passa no concurso e começa a atuar em uma delegacia no Rio de Janeiro, atendendo ex-policiais e pessoas que necessitam de sua ajuda profissional. Roberto Nascimento, conhecido como Capitão Nascimento é...