cap 8

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— olhe, aquela janela está aberta. Deve ter alguém por ali.
A voz estava praticamente no meu ouvido, e me sentei de repente. Onde eu estava? Ah, sim. No cemitério. Só que agora a luz do sol tinha invadido o lugar, e dentro do quarto fazia um calor de oitocentos e noventa graus,
mais ou menos.

— Não acha que deveria ter placas informando para onde ir? — Era a voz de uma mulher, com um sotaque tão forte quanto molho barbecue.
Um homem respondeu:

— Gloria, isto aqui parece uma residência. Acho que não deveríamos estar bisbilhotando...

— Iuu-huuu! Olá? Tem alguém em casa?
Tirei as cobertas e saí da cama, tropeçando em um monte de almofadas. Eu nem havia trocado de roupa antes de dormir. Estava tão cansada que nem sequer cogitei colocar o pijama.

— Ol-ááá — gorjeou outra vez a mulher. — Tem alguém aí?

Fiz um coque para não assustar ninguém, depois fui até a janela e vi duas pessoas que combinavam perfeitamente com suas vozes. A mulher tinha um cabelo vermelho-bombeiro e vestia uma bermuda de cintura alta, e o homem usava chapéu de pescaria e carregava uma câmera enorme pendurada no pescoço. Eles estavam até de pochete. Segurei uma risadinha. Uma vez, eu e barreto ganhamos um concurso de fantasias vestidas como Turistas Cafonas. Aqueles dois poderiam ter sido nossa inspiração.

— Olá-á — disse lentamente a Turista Cafona da Vida Real. Ela apontou para mim. — Você fala inglês?

— Eu também sou americana.

— Graças aos céus! Estamos procurando Howard Mercer, o superintendente. Onde podemos encontrá-lo?

— Não sei. Eu sou... nova aqui.
A vista chamou minha atenção e olhei para cima. As árvores do lado de fora da minha janela eram de um verde denso e aveludado, e o céu talvez fosse o mais azul que eu já tinha visto. Mesmo assim, eu continuava num cemitério. Repito: continuava. Em. Um. Cemitério.

A Turista Cafona olhou para o homem, depois outra vez para mim, colocando as mãos na cintura como quem diz: "Você não vai se livrar de mim assim tão fácil."

— Vou ver se ele está em casa.
— Ah, isso aí — disse ela. — Vamos esperar lá na frente.

Abri a mala e vesti uma regata e um short de corrida, encontrei meus tênis e desci. O térreo era bem pequeno e, fora o quarto do Howard, o único cômodo que eu não tinha visto era o escritório.

Bati na porta só por precaução antes de entrar. As paredes eram cobertas por discos dos Beatles e fotos emolduradas. Parei para observar uma do Howard junto com algumas pessoas jogando baldes de água num elefante enorme e lindo. Ele estava de bermuda cargo e chapéu de safári e parecia o astro de algum programa de aventuras na natureza.

Howard dá banho em animais selvagens. Era óbvio que ele não tinha passado os últimos dezesseis anos sentado com saudade da minha mãe e de mim. Desculpem, Turistas Cafonas. Nem sinal do Howard. Fui até a entrada, pronta para dizer aos Cafonas que não podia ajudá-los, mas quando entrei na sala, dei um pulo como se tivesse pisado num fio desencapado.

A mulher não apenas estava me esperando na frente, como tinha imprensado o rosto na janela e me olhava como um inseto enorme.

— Aqui. Aqui! — murmurou ela, apontando para a porta da frente.

— Você só pode estar brincando.
Coloquei a mão no peito. Meu coração batia um milhão de vezes por minuto. Eu imaginava que a vida num cemitério fosse muito mais... morta. Ba dum tss! Minha primeira piada oficial de cemitério. E o primeiro revirar de olhos oficial por causa da própria piada de cemitério.
Abri a porta e a mulher recuou alguns passos.

— Desculpe, querida. Assustei você? Parecia que seus olhos iam saltar. Ela usava uma daquelas etiquetas de identificação. OLÁ, MEU NOME É GLORIA.

— Eu não esperava que você estivesse...  olhando aqui pra dentro. — Balancei a cabeça.

— Sinto muito, mas Howard não está. Ele comentou que tem um escritório por aqui. Talvez vocês possam procurar lá.
Gloria assentiu.

— Aham. Aham. Bem, o problema é o seguinte, florzinha. Daqui a apenas três horas o ônibus vai voltar para nos pegar, e queremos conhecer tudo. Acho que não temos tempo para ficar andando por aí à procura do sr. Mercer.

— Vocês foram ao centro de visitantes? A mulher que trabalha lá deve saber onde ele está.

— Eu falei que devíamos ter feito isso — disse o homem. — Isto aqui é uma residência.

— Qual é o centro de visitantes? — perguntou Gloria. — Era aquele prédio perto da entrada?

— Desculpe, eu não sei mesmo.
Talvez porque na noite anterior eu estivesse apavorada demais para notar qualquer coisa além do exército de túmulos  me encarando.
A mulher ergueu uma das sobrancelhas.

— Olha, detesto incomodá-la, querida, mas tenho certeza de que você conhece este lugar melhor que um casal de turistas do Alabama.

— Para ser sincera, não.
— O quê?
Eu suspirei, lançando mais um olhar esperançoso para dentro de casa, mas o lugar estava silencioso como um túmulo. (Credo! Segunda piada de cemitério.)

Parecia que eu ia ter que entrar de cabeça naquela coisa toda de morar num memorial. Então fui para a varanda e fechei a porta.

— Eu realmente não sei onde ficam as coisas por aqui, mas vou tentar ajudar. Gloria abriu um sorriso extasiado.

— Gratziei.
Desci a escada, e os dois me seguiram.

— Cuidam muito bem deste lugar — observou Gloria.

Muito bem.  Ela estava certa. Os gramados eram tão verdes que pareciam pintados com tinta spray, e em praticamente todos os cantos havia um arranjo com as bandeiras italiana e americana cercadas de flores que pareciam saídas de O mágico de Oz. As lápides eram brancas e reluzentes, um pouco menos sinistras durante o dia. Mas não me entenda mal: elas continuavam sendo sinistras.

— Vamos por aqui. — Fui em direção à rua pela qual Howard e eu tínhamos chegado. Gloria me cutucou com o cotovelo.

— Eu e Hank nos conhecemos num cruzeiro.
Ah, não. Gloria ia me contar a história deles? Dei uma olhada rápida para ela, que abriu um sorriso simpático. Claro que ia.

— Ele tinha acabado de perder a esposa, Anna Maria. Ela era uma boa mulher, mas muito peculiar na forma de manter a casa... Uma daquelas pessoas que forram toda a mobília com plástico. Meu marido, Clint, tinha morrido alguns anos antes, então era por isso que eu e Hank estávamos no cruzeiro para solteiros. A comida era ótima... Montanhas de camarão e sorvete à vontade. Você se lembra daquele camarão, Hank?
Ele não parecia estar ouvindo. Eu apertei o passo, e Gloria fez o mesmo.

— Havia um monte de velhos tarados no barco, uns caras nojentos, mas por sorte eu e Hank fomos colocados na mesma mesa no jantar. O navio nem tinha atracado e ele já tinha me pedido em casamento de tão decidido que estava. Nós nos casamos apenas dois meses depois. Eu já estava instalada na casa dele, obviamente, mas apressamos as coisas porque não queríamos ficar, sabe... — Ela fez uma pausa, me olhando como se eu entendesse tudo.

— O quê? — perguntei, hesitante.

— Vivendo em pecado — disse ela, baixinho.
Olhei em volta, desesperada. Eu precisava encontrar Howard ou algum lugar para vomitar. Talvez os dois.

— A primeira coisa que fiz foi arrancar todo o plástico da mobília. Não dá para viver com o traseiro colado na droga do sofá. Não é, Hank?
O homem emitiu um som gutural.

— Esta viagem é como uma segunda lua de mel para nós. Passei a vida inteira querendo visitar a Itália, e consegui realizar meu sonho. Você é muito sortuda por morar aqui. Muito!

Fizemos uma curva e demos de cara com um pequeno prédio. Ficava ao lado da entrada principal e nele havia uma placa gigantesca dizendo VISITANTES, REGISTREM-SE AQUI. Fácil de confundir com VISITANTES, ENCONTREM A CASA MAIS PRÓXIMA E GRITEM PARA QUEM ESTIVER LÁ DENTRO.

— Acho que é aqui — falei.
— Eu falei! — exclamou Hank para Gloria.

— Você não falou nada. — Gloria bufou. — Só ficou me seguindo que nem um vira-lata.

o destino - nle doprêOnde histórias criam vida. Descubra agora