Capítulo III - A Dama dos Mil Olhos

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Alexandre — Carontia, 12 anos atrás

Alguns dias se passaram. Alexandre estava infinitamente aliviado por Áries não ter morrido de alguma infecção vinda dos ferimentos graves, surpreso por não ter presenciado alguma febre aguda. Almirante Muirenn tinha feito um ótimo trabalho, como sempre.

A notícia do assassinato do Rei Eirian e de suas filhas já tinha chegado na cidade, e algumas pessoas andavam de preto. O Capitão Bran, entretanto, vagava com as roupas de sempre, os pedaços de armadura e os panos roxos, como se o óbito de Eiri não o afetasse. Áries parecia tentar fazer o mesmo, da própria maneira.

Eles não conversavam sobre o ocorrido. O garoto explicaria quando tivesse vontade, se é que teria algum dia. Além disso, Alexandre não tinha certeza de que queria saber. Se a própria memória era o único lugar no qual Eirian ainda vivia, que permanecesse daquele jeito.

Ainda era de manhã quando ambos deixaram o Miragem, o navio de Alexandre. Apesar do sol, fazia frio em Carontia, mas a ausência de calor era compensada pela claridade, e o Capitão Bran era um fiel seguidor da filosofia de que contanto que o dia chegasse, tudo ficaria bem. Independente dos problemas dele, ainda sentiria a luz no rosto e havia conforto nisso.

Não existem carruagens em Carontia. Afinal, é impossível criar cavalos naquela cidade ou nas pequenas ilhas ao redor. A locomoção era através dos canais com as canoas e gôndolas. Alexandre se considerava especialmente bom em manobrar aquelas pequenas embarcações, consideravelmente menos complicadas do que operar uma fragata, já que podia fazer tudo sozinho. Além disso, se ficasse com preguiça, era só atirar um gancho na embarcação mais próxima indo no mesmo sentido. Era uma carona gratuita enquanto despercebida.

De pé na popa da gôndola que tinha pego emprestada, o Capitão Bran tomava cuidado especial com os movimentos, sempre de olhos atentos em Áries, que permanecia sentado próximo da proa. O garoto, cujas feições eram disfarçadas pelo capuz da capa que usava, observava os prédios e demais barquinhos ao redor. Às vezes, ele tocava a água com os dedos, sentindo a corrente e ocasionais pedaços de gelo, inexpressivo.

Ele estava limpo agora, sem sujeira ou ferimentos abertos. Suas mãos, agarradas à borda do casco da embarcação, carregavam um tremor. Alexandre não era profissional no assunto, mas algo o dizia que tinha a ver com magia ou talvez o estresse. Provavelmente, uma combinação dos dois.

Ainda era um milagre, de qualquer forma, principalmente quando o capitão pensava na velocidade que a amputação parecia regenerar. Talvez, aquela mesma magia que trazia tremores também o mantinha respirando. Era um Diasir, afinal, e Alexandre se lembrava da mesma coisa acontecendo com Eirian e as pessoas curadas por ele. O Rei torcia o tornozelo e aparecia uma hora depois correndo melhor que antes.

Então como ele morreu? Alexandre remou com mais força.

— Você não me disse aonde estamos indo. — Áries murmurou na proa, sem tirar os olhos das águas. Continuava levemente rouco. — É muito longe?

— Você vai conhecer uma amiga minha. Nada é muito longe nessa cidade.

Não houve resposta. O Capitão Bran abaixou a cabeça para evitar se chocar contra uma ponte baixa.

— Ela chama Anezzia Mebária, a Dama dos Mil Olhos. — ele prosseguiu. — Ela é como uma chanceler. Você sabe o que é isso?

O pequeno fez que sim com a cabeça.

— De longe. Ela trabalha com a Duquesa de Rades, então? — ele perguntou, miúdo.

— Não exatamente. Ela não trabalha pra ninguém, na verdade, mas a Duquesa é uma cliente dela às vezes e vice-versa. — Bran explicou. — Anezzia trabalha com venda e compra de informações e mantém documentação de todas as pessoas em Carontia, o que agora inclui você. Estamos indo fazer seu registro.

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