Prólogo - Ele vai matar todos nós

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Alexandre — Carontia, 12 anos atrás

Sentado na frente da rígida mesa de mogno em sua cabine, o capitão Alexandre Bran encarava fixamente o braço decepado repousando na superfície. Não havia mais sangue no membro, já que drenar foi a primeira coisa que o capitão fez, preocupado com a sujeira excessiva. A região do pulso e antebraço havia sido cuidadosamente aberta, os tendões expostos, mas tempo demais já tinha passado e a rigidez pós-morte tinha chegado. Não havia porque continuar, pois Alexandre já tinha olhado tudo que queria.

Anotações quase ilegíveis contornavam rabiscos anatômicos no caderno ao lado do braço. As velas, agora quase extintas, mal conseguiam iluminar a cabine abarrotada de itens. Baús, caixotes, armas cobertas de poeira e roupas que jamais vestiria, mas que tinha esquecido de vender. Estava se tornando um problema, tanto para ele quanto para o resto da tripulação, mas poderia resolver tudo no dia seguinte.

Um breve olhar na direção das próprias mãos foi o bastante para o capitão notar leves manchas de sangue, além de pontos pretos vindos da tinta da pena. Não importava a drenagem ou o cuidado, sempre acontecia algo do tipo. Com o ambiente abafado e as luzes precárias, sua dor de cabeça só aumentou.

É o que costumava acontecer quando ele utilizava do álcool para estabilizar as mãos. A hesitação morre e junto dela vai... a coerência? Alexandre suspirou, mexendo a cabeça para os lados até que algumas juntas estalassem. A tensão nos ombros só sairia com algum analgésico ou massagem. Uma massagem seria incrível, na verdade.

Finalmente, ele se levantou e jogou um pano velho sobre o braço examinado. Seus pés nem mesmo notavam o balanço suave das ondas contra o casco do navio ou o desconforto das botas de couro, o costume de anos na pirataria forrando quaisquer inconveniências.

Após livrar-se do foco que havia dedicado ao braço e alongar-se com tanta vontade que quase tocou o teto de madeira da cabine, Alexandre xingou baixinho para si. Talvez uma das inconveniências forradas, mesmo que momentaneamente, tenha sido o cheiro de carniça emanando de seu experimento anatômico caseiro.

Passos apressados levaram-no até as janelas da cabine abafada, e Alexandre as abriu com um gesto rápido. Deuses, talvez ele devesse apenas jogar fora o membro apodrecendo, deixá-lo boiar e ser consumido pelas criaturas rondando as águas. Não é como se o dono fosse se importar — é difícil ficar nervoso quando seu cérebro está afundado num pote de sal no estúdio de um alquimista qualquer. Qualquer um podia facilmente tomar para si partes de um cadáver em Carontia. Alexandre não era dali — tinha nascido em Mesai, nos arredores da Floresta dos Vestidos, onde o frio era cruel e permanente, corpos usualmente congelados demais para qualquer tipo de estudo.

Mas, não em Carontia, onde talvez a frequência dos óbitos facilitasse aquele processo. Naquela cidade construída a partir de um aglomerado de pedras no meio do mar, os carontes usavam o fundo do oceano como seus cemitérios, tubarões e outros carnívoros atuando como coveiros. Alexandre agarrava qualquer chance que tinha.

Quanto mais você repete uma palavra, mais ela perde seu sentido. Alexandre havia se convencido de que aquilo também se aplicava à morte.

Segurando o braço decepado com a ajuda do pano, Alexandre atirou o membro para fora da cabine. Cheiro insuportável, sabe como é... Os tubarões certamente não reclamariam, e os deuses para os quais Alexandre rezava tinham ficado em Mesai, longe demais para verem aquele tipo de escândalo. Longe demais para ouvirem súplicas também, infelizmente, não que ele ainda tentasse.

Através das janelas, era possível ver a cidade com seus lampiões de óleo de baleia, constelações em meio a névoa daquele labirinto de canais. A noite transformava não só as docas, mas Carontia inteira, em um fantasma. Como que de consolo, sempre havia música na cidade, independente do horário. Alexandre sabia que era culpa dos irenianos, famosos incapazes de ficar em silêncio, mas que compunham música boa, pois os construtores responsáveis pela escultura bizarra que era Carontia tiveram bastante tempo para aprender a mexer nas cordas e tambores.

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