Capítulo VI - A que ficou

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Eda — Irenia, atualmente

Ela deveria estar dormindo. O dia seguinte se iniciaria assim que o sol nascesse, uma dezena de tarefas diferentes espalhadas pelas horas a seguir: treinamentos, duelos, aulas, favores para o rei. Entretanto, ao invés de tentar descansar por um máximo de 5 horas, Eda estava empoleirada em uma das vigas do teto de um dos escritórios do Rei de Irenia.

O palácio em Savis, capital de Irenia, era preenchido por passagens secretas, atalhos entre cômodos diferentes, salas secretas para encontros privados, saídas em caso de emergências — há 12 anos, quando o Rei Eirian foi assassinado, nenhum daqueles caminhos foi útil. Eda estava viva, entretanto, convicta de que ficar empoleirada era melhor do que se esgueirar por passagens sufocantes.

Havia um motivo bom para aquele trabalho todo. Abaixo dela, uma conversa mantinha curso. Enquanto uma das pessoas parecia ser uma mensageira que Eda não conhecia, a outra era extremamente familiar: Rei Vidal, armado de toda a cordialidade e cuidado do mundo. Era impossível ignorar aquele tom, não importava o quanto Eda houvesse tentado algum dia. Quando olhava para baixo de seu esconderijo na escuridão, via a tiara prateada cravejada de diamantes azuis perfeitamente posicionada nos cabelos do rei. Via também as elegantes vestes azuis, os gestos amplos de um homem com tudo sob controle.

A mensageira e Rei Vidal conversavam. Era claramente um assunto secreto, discutido de madrugada em uma pequena sala. Eda mantinha-se estática sobre a viga, oculta pela iluminação precária. O único olho que restava bem aberto, toda a energia posicionada na tentativa de absorver a conversa. Tinha subido naquela viga por uma saída de ar no topo da sala, alguns metros acima. Após 26 anos vivendo naquele castelo, tinha se obrigado a memorizar todo trajeto, todo cantinho.

— É o que temos, Vossa Majestade. O trajeto do Ducado de Avestia até a Cidade de Carontia costuma durar no mínimo 8 dias, com possíveis variações. — a mensageira disse. — O navio já deve estar em território caronte, caso nenhum imprevisto tenha ocorrido.

— Excelente trabalho. Algum mensageiro de Carontia se pronunciou? — Rei Vidal perguntou. — Merlot disse algo?

Ah, Merlot... A simples menção daquele sobrenome fazia o estômago de Eda rodopiar, mas ela continuou parada, respiração controlada. Já tinha feito aquele tipo de espionagem uma centena de vezes.

— Ainda não, mas cartas devem chegar na próxima semana ou na seguinte, Vossa Majestade.

— Assim que chegarem, quero que envie um esquadrão real para Carontia. Não há necessidade de me consultar antes da saída, pois quero meus soldados naquela cidade o mais rápido possível caso haja confirmação. Eles saberão o que fazer.

— Sim, senhor. — a mensageira acatou.

— Perfeito. — Rei Vidal pareceu bater uma palma, baixinho. — Dispensada.

A mensageira se afastou e saiu o delicado abrir e fechar da porta do cômodo. Mesmo com o encontro encerrado, Eda não reagiu, não de imediato, olho direito fixado na figura do Rei. Eda não enxergava do olho esquerdo, que era mantido sob um tapa olho simples desde o momento em que foi acertado por um ataque anos atrás. Com a noção de profundidade prejudicada, ela estimava distâncias com base no tamanho das coisas.

O palácio de Savis, carinhosamente apelidado de Ninho, tinha sido construído contra a parede do planalto a oeste do porto da cidade, até seu topo, de onde torres se erguiam em direção aos céus. O escritório principal do Rei ficava em uma daquelas torres, com vista para os jardins do palácio, o lago, os estábulos, e a floresta que se alongava além dos muros. O escritório no qual aquela pequena reunião se encontrava era nos subterrâneos, entretanto.

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