Capítulo XI - Os instrumentos dos deuses | Parte II

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Alexandre — Carontia, 12 anos atrás

Em Carontia, poucos metros sob as calçadas de pedra, há um labiríntico sistema de túneis em constante mudança pelo movimento das marés. Gerado entre as fundações dos prédios, suas paredes são as vigas das casas e as muralhas que moldam os canais. Não são caminhos para todos — com o chão precário composto pelas rochas deformadas da cidade e antigos vestígios das construções, o risco de acidentes sempre ronda ao lado dos viajantes daqueles atalhos ocultos.

Não era o tipo de rota pela qual Alexandre, robusto como era, gostava de passar. A constante ameaça do retorno da água naqueles estreitos corredores o levavam de volta para a fronteira entre Irenia e Mesai, aqueles túneis de terra nos quais as ondas tinham formato de gente.

O capitão não confiava em si mesmo naquele espaço, mas confiava em Ígnis. Quanto mais o garoto crescia, mais a cidade se tornava dele, assim como o oposto. Alexandre tinha o conhecido ainda pequeno, antes mesmo do garoto perder o pai, e presenciou Ígnis caindo nas graças do Templo, dos taberneiros, dos capitães nas docas, dos ladrões e fofoqueiros. O menino parecia gostar daquelas conexões, orgulhoso do próprio trabalho, mas Alexandre secretamente ansiava por apenas vê-lo brincando com outras crianças algum dia, com as roupas sujas e bagunçadas de tanto correr por aí.

— Por aqui. — Ígnis chamou, um pouco mais a frente no túnel. Seus olhos brilhavam naquela semi escuridão, dois faróis na caligem. — Desculpa te fazer passar por isso, mas você sabe como minha mãe é com essas coisas.

— Relaxa, Centelha. — Alexandre respondeu. — Não tem problema, eu me sinto um agente secreto.

O capitão carregava Áries nas costas, como uma mochila, muletas nas mãos. Tinha se acostumado com o peso, ciente de que talvez tivesse sido um pouco dramático quando pegou-o no colo nas primeiras vezes. Sim, Áries era um pouco pesado com os músculos de seu treinamento, mas ainda era fácil de manejar. Ele estava encolhido e quieto, com o queixo descansando contra a placa de metal da armadura no ombro de Alexandre.

O gotejar de água na distância era frequente, ecooando pelo corredor úmido. A única orientação de Alexandre era o assobio de Ígnis, cujos passos eram quietos demais, além do ocasional relance do par de olhos Soleni. O caminho entre o Templo e a casa dos Fergales não era distante, nem mesmo inédito para o capitão, mas, toda vez que passavam por lá, Ígnis ainda pedia desculpas.

O cavalgar em círculos de cavalos de guerra, o som abafado dos cascos contra as pedras das ruas acima, contra as paredes da cabeça de Alexandre. Os únicos cavalos em Carontia eram os que ele tinha trazido consigo na mente.

— Parece uma mina. — Áries sussurrou, mas o eco do corredor subterrâneo amplificou sua voz. — Opa.

— É tipo isso, mas sem minérios. Tem bolo no final. — Ígnis explicou. — Pra mim, pelo menos. Vocês que se virem.

— Filho único.

— Claro que sou, meus pais acertaram de primeira. — o Soleni deu uma olhadinha para trás. — Pra que fazer outro?

Como resposta, Áries riu. Ele balançava a perna esquerda como se pendesse de uma cadeira, um sútil sinal de bom-humor. Em suas idéias, Alexandre também conseguia imaginar a expressão de orgulho em Ígnis. Fiz um desconhecido rir, ele devia estar pensando. Ponto pra mim.

— Chegamos. — Ígnis anunciou. — Me ajuda, eu não alcanço.

Alexandre se aproximou e tateou as pedras no teto do túnel com uma das mãos, acostumado com o processo e o calor da própria respiração contra as paredes. Então, ao sentir as frestas certas, deu algumas batidinhas na superfície. Eram cinco, no total, uma para cada letra do nome da Deusa do Fogo, Brasi.

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