Capítulo um - Véspera de natal

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Um mês depois.

Escuto o barulho do alarme do meu celular e me assusto, levantando de uma vez e batendo a cabeça na caixa que fica acima da minha cama na prateleira. Desligo o celular e dou um soco na caixa, que começa a deslizar e se espatifa em cima da cama, as coisas de dentro da caixa caindo em cima de mim. Estou coberto por conjuntos de lençóis fechados, tupperware transparentes, cabides, um espremedor de suco, colheres de pau e fronhas de travesseiro.
- Droga, Benji!
Benji, meu ex-noivo que havia me largado no altar há um mês atrás, disse que iríamos dividir as coisas igualmente mas, já faz um mês e parte das coisas estavam amontoadas em minha casa de dois cômodos. O apartamento de Benji era muito maior, havia outra parte dos presentes no apartamento dele. Não havíamos conversado muito desde que ele me chutou no meio de 200 convidados numa igreja abarrotada com nossos parentes.
Pego meu celular e dou um pulo da cama ao ver que já estou atrasado para o trabalho. Escovo meus dentes enquanto coloco uma camiseta e uma calça limpa. Esbarro em outra caixa quando estou saindo do meu banheiro e mergulho no chão como um nadador profissional. Eu não sou nadador profissional mas, aproveito a queda para pegar meu all star embaixo da cama. Sacudo a poeira da minha roupa e saio de casa, trancando a porta. Desço de dois em dois degraus e saio pelas portas dos fundos, a fim de evitar a senhora Cha, que me perturbaria novamente sobre o dinheiro do aluguel. Estava atrasado há duas semanas e ela não entendia que meu salário também estava atrasado há duas semanas e a dívida da faculdade também estava atrasada. Eu gostaria de um milagre chamado dinheiro mas, aquilo estava fora de questão. Eu só podia esperar e era isso que eu estava fazendo. Pedir ajuda para os meus pais estava fora de questão. Eles pareciam estar me evitando desde o incidente do casamento. Estavam sempre viajando ou em reunião, nunca disponíveis para me responder ou saber como eu estava lidando com aquela merda toda.
É véspera de natal. As ruas estão decoradas e as lojas estão abarrotadas de gente. Quando eu chego no café em que trabalho, preciso empurrar as pessoas gentilmente para poder passar. Sou recebido pelo cheiro de cookies que assam na cozinha e pelo calor que emana de dentro do pequeno café bistrô. A senhora Lim tem os melhores biscoitos de Bangkok, e todo natal as pessoas fazem filas gigantes para levar seus doces e biscoitos para o jantar de natal.
Assim que eu chego, coloco minha mochila embaixo do balcão, lavo as mãos e pego meu avental que está pendurado no anexo do banheiro. Sou acolhido por burburinhos pelo ritmo frenético do café, quando tomo a frente do balcão e começo a atender os clientes. Toda aquela agitação faz com que eu engula meu almoço, um pad thai* que fiz na noite anterior com uns ovos que estavam na geladeira. O tofu não está com um gosto muito bom mas, eu como mesmo assim e tomo água para ajudar a descer. Em quinze minutos eu já estou de volta ao balcão.
Estou mergulhado em suor, farinha e manteiga quando o último cliente vai embora e eu fecho a porta, virando a plaquinha para indicar que o café está fechado.
- Foi uma boa véspera de natal. - Diz a senhora Lim enquanto começa a fechar o caixa e contar o dinheiro.
Ela parece focada em sua tarefa, os olhos brilhando toda vez que um *baht de 100 passa em suas mãos. Eu escolho não incomodá-la, e vou até os fundos. Lavo meu rosto e penduro o avental no anexo. Pego minha mochila embaixo do balcão e vou em direção a porta.
- Noeul, espere um segundo.
Eu me viro e a senhora Lim vem em minha direção. É uma mulher baixinha e rechonchuda, as unhas azuis como garras, as bochechas protuberantes e vermelhas do calor. Ela parece cansada só em ter andado do caixa até a porta para me alcançar. Ela para um segundo para respirar e me entrega um envelope.
- Esse é seu pagamento atrasado e mais um bônus pelo dia de hoje.
- Dia de hoje?
Ela parece irritada e ao mesmo tempo enjoada, como se quisesse vomitar.
- Vamos contratar outra pessoa, não precisa mais vir amanhã.
Meus olhos se arregalam e de repente eu sinto como se eu quisesse vomitar.
- Mas é natal...
- Na verdade, estamos na véspera.
Eu me sinto idiota por ter usado aquela desculpa idiota para segurar meu emprego.
- Você acabou de se formar, Noeul. Tenho certeza de que vai encontrar algo melhor e mais desafiador do que fazer biscoitos.
- Eu gosto de trabalhar aqui, não tem problema nenhum pra mim.
Na verdade, eu não gostava. Mas, eu tinha a dívida da faculdade para pagar, tinha o aluguel e uma dívida enorme da droga do casamento que não aconteceu.
- Eu sinto muito.
Eu aperto o envelope entre os dedos e com um wai* me despeço da senhora Lim e saio do café. Nas ruas, todo mundo parece feliz demais, alegre demais. Satisfeitos com tudo. Dentro de mim, sinto uma angústia dolorida. Pego meu celular e disco o número do meu pai. Fica alguns minutos chamando e sou encaminhado para a caixa de mensagens. Disco o número da minha mãe e acontece a mesma coisa. Olho os telefones em meus contatos, amigos que eu não falava há um mês, amigos que também estavam sentados naquela igreja mas, depois daquele ''não'' dito por Benji, foi como se tudo tivesse começado a me dizer não também. Meus pais, meus amigos, e agora a senhora Lim. Eu estava fadado ao fracasso. Em pleno natal.
- Feliz véspera de natal, garoto.
Sinto uma raiva tomar conta de mim e quando percebo, estou gritando no meio da rua.
- EU JÁ ENTENDI QUE É VÉSPERA DE NATAL MAS NÃO É NATAL DE QUALQUER JEITO? VOCÊS NÃO COMEMORAM HOJE? SÓ PORQUE COMEMORAM MEIA NOITE? É NATAL DE QUALQUER JEITO, PAREM COM ISSO DE VÉSPERA DE NATAL!
Estou ofegante quando termino, as pessoas com sacolas nos braços me olham estranho e assustadas. O segurança da loja do outro lado da rua vem em minha direção, e antes que ele possa dizer algo, meu telefone toca. O nome de Benji brilha na tela.
- Olha só se não é aquele filho da puta. - O segurança me olha e eu mostro para ele o nome do Benji na tela. - Esse aqui é meu ex-noivo, e ele está me ligando na véspera de natal. Ele me largou no altar, não é romântico?
- Desculpa, rapaz, mas vou ter que ligar para a polícia. Está assustando as pessoas.
Eu continuo olhando para meu celular, o toque estridente do aparelho.
- Você por acaso bebeu?
- Rá! - Eu respondo. - QUEM DERA EU TER BEBIDO! Eu preciso mesmo da droga de uma bebida.
Dou as costas e vou pra casa, ignorando a chamada de Benji. Quando eu chego em meu apartamento, a senhora Cha está na recepção.
- Noeul, eu queria falar...
- O dinheiro do aluguel, aham. Vou te pagar. Se eu não paguei ainda é porque não tenho dinheiro.
Ela parece ofendida. Eu nunca havia falado com ela daquela forma.
- Se não pagar vai ser despejado, rapaz mal educado.
- EU NÃO LIGO! Vai ser só mais um ''não'' que vou receber. Que diferença faz?
- Pobr...
- Não ouse dizer pobrezinho!
Eu subo as escadas até meu apartamento, e arranco o papel escrito ''atraso'' em letras vermelhas colado em minha porta. Tropeço em uma caixa quando entro dentro de casa e num acesso de raiva eu tiro todas as caixas que estão espalhadas e as jogo do lado de fora. Eu moro no último andar, o ''quintal'' do meu pequeno apartamento é o telhado onde os vizinhos iam para fumar, beber ou ficar conversando até tarde, o que às vezes não me deixava dormir.
Arrasto a última caixa para o lado de fora, e uma moldura de um quadro desliza e cai no chão de cimento, fazendo um ''plaft'' de vidro estilhaçado. Pego o quadro e o viro para ver a foto. Com a queda, o vidro do porta retrato rachou ao meio, mas ainda consigo ver a foto. Estou sentado no colo de Benji, e estamos usando roupas combinando. Uma camisa branca e uma bermuda caqui. Meus braços estão ao redor do seu pescoço e os olhos dele brilham, acompanhando meu sorriso escancarado. Foi na festa de aniversário de Promk, quando Benji me apresentou para os seus amigos. Promk deve ter pego aquela foto com seu fotógrafo e guardado. Era uma bela foto.
Lágrimas começam a rolar pelo meu rosto e pingar na foto com a moldura destruída. Gotas grossas de chuva começam a cair, me molhando e molhando as caixas que acabei de arrastar para fora. Tento arrastar as caixas de volta pra dentro mas, em vão. A chuva pesada já está molhando tudo que tem dentro da caixa.
Ainda com o quadro na mão, eu caminho até o parapeito do telhado. Observo os carros passando lá embaixo. Subo no parapeito, firmando meus pés no lugar. O tom azul escuro pinta o céu, e as gotas continuam caindo. Olho para a imensidão de Bangkok, as luzes dos prédios acesos, os carros passando lá embaixo, uma música tocando no andar debaixo. A vida de todo mundo continuou, mas, minha vida parecia que havia empacado há um mês atrás. Como um efeito dominó, tudo estava desmoronando. Eu não tinha mais esperança de nada.
- Porque? - Eu grito para o vazio. - Porque eu preciso passar por tudo isso? Porque eu mereço algo assim?
Eu empino meu nariz para o céu, me sentindo amargurado e vazio.
- No que eu tenho culpa, hein? Porque você me odeia tanto?
Nenhuma resposta.
- Babaca.
Me inclino para a frente e respiro fundo, os cacos do vidro do quadro quebrado perfurando minha mão.
- Agora não preciso mais de resposta nenhuma.
Um raio atravessa o céu, e posso jurar que sinto o chão embaixo dos meus pés tremer, como um terremoto. Será que eu deixei Deus bravo? Ou Jesus? Era o aniversário dele, não era? Era o que se dizia em algumas religiões. Mas ainda era véspera, não era hora de Jesus soprar as velinhas ainda.
Escuto um barulho muito alto, e desço do parapeito da janela entrando dentro do meu apartamento. De princípio eu acho que o gás explodiu, ou é um terremoto chegando mas, quando entro dentro de casa, vejo que uma parte do meu teto desabou. Há alguns escombros no chão. Com cuidado, eu chego perto para olhar. Caio para trás quando vejo os escombros se mexendo. Fico imóvel e abafo um grito. Uma luz muito clara entra através do buraco no teto. Parou de chover, mas estava fazendo sol? Era 19h da noite, não fazia sentido.
Um corpo sai do meio dos escombros e se ergue, fazendo com que a luz estranha o acompanhe, quase me cegando. A luz diminui e posso ver com um pouco mais de clareza. Esfrego os olhos e por um segundo não acredito no que estou vendo. O corpo que sai dos escombros carrega com ele um par enorme de asas.

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Nota da autora: *Pad thai é um dos mais conhecidos pratos típicos da Tailândia e amplamente aceito pelos paladares ocidentais. A receita tradicional leva noodle de arroz refogado com ovos, tofu e temperado com suco de tamarindo, molho de peixe, camarão seco, alho, cebola, pimenta e açúcar de palma. É geralmente servido com brotos de feijão, rodelas de limão e amendoim tostado. Existem muitas variações que adicionam camarão fresco, frango e porco. (N/T)

Nota da autora: *Wai - Na Tailândia, as pessoas não apertam a mão (embora o façam com estrangeiros) e não se beijam. Elas usam o wai (ไหว้) para cumprimentar, agradecer e mostrar respeito.

Nota da autora: *Baht - Moeda tailandesa

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