O Primeiro Dia.

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Segunda -feira às oito trinta e cinco da manhã Bella estava sentada enquanto lia o contrato de cinco páginas inteiras, que ela havia achado curto demais, mas a linguagem era completamente compreensiva, e muito bem resumida, e a maior parte do documento versava sobre a dieta nutricional de Benjamin, a criança de quatro anos filho dos donos da casa, Suas folgas ficaram reservadas aos sábados, apenas uma vez a cada mês, ficou concedida a possibilidade de afastamento por doença própria ou de dependentes, o conjunto da obra garantiu uma grande segurança e tranquilidade para ela, enquanto assinava o documento, Bella pensava sobre a insistente impressão que tudo ali era bom demais para ser verdade, e que talvez ela não merecesse estar naquele lugar, mas ela sabia de onde vinha aquela voz. Era pura e simples auto sabotagem, medo de não se sabe o quê, sem porquê, medo inútil.

Terminou de rubricar o contrato e o entregou nas mãos de Adam, que esperou em silêncio que ela acabasse todo o processo sem expressar quase nenhuma reação, ele entregou a cópia para a nova empregada em silêncio, conferiu as horas no relógio e assistiu a mesma guardar os papéis em uma pasta delicadamente, e somente quando a mulher fez menção de se levantar ele disse.
— Antes que você vá para a cozinha, quero esclarecer o ocorrido entre nós pelo telefone dois dias atrás.
—Achei que tinha deixado clara a minha opinião e opções de tratamento como profissional, Adam. E ainda que você não fosse meu contratante, eu não iria querer ser tão íntima de alguém comprometido, não combina comigo.

Ele sorriu sem mostrar os dentes, o olhar era quase galanteador, pois uma pequena brasa dançava em seus olhos, tirou a aliança de seu dedo anelar, e voltou ao olhar nos olhos da negra dizendo.
— Minha esposa e eu temos um acordo. Fizemos isso, desde que o menino nasceu, ela teve problemas psicológicos logo após o nascimento dele e para não me perder por completo, ela concordou em me permitir que eu transasse com outras mulheres desde que elas nunca entrassem dentro desta casa, e nem fossem apresentadas ao nosso filho. Quando ela se recuperou, e nossa relação voltou a melhorar, ela passou a assistir, e participar de alguns desses encontros, e o acordo foi mantido na surdina.
— Isso não dá a você o direito de...— Ele colocou sua mão sobre a dela, impedindo-a gentilmente de continuar e pediu: —Por favor? Deixe-me terminar. Eu certamente avancei o sinal em relação a você, já que me surpreendi positivamente pela sua aparência e pelo seu talento, mas é óbvio que eu entendo que seria muito mais complicado que acontecesse algo entre nós, por mais prazeroso que fosse. Com você vivendo diariamente nesta casa debaixo dos olhos da Emma e do Ben, e como você já manifestou claramente sua rejeição, eu não pretendo tocar nesse assunto novamente, e também modificarei o tratamento que normalmente a dirijo, senhoria Akintola.— Ele suspirou visivelmente descontente, mudou o braço de posição oferecendo a mão direita para que ela apertasse. —Estamos de acordo?
— Sim, senhor Darkist.
— Tenha um ótimo dia!— Ele desviou o olhar já se levantando na direção da estante de livros logo atrás de sua cadeira, e ela saiu abrindo e fechando as portas sem fazer barulho. Os patrões deixaram os pedidos para almoço e jantar em um mural de ímãs e recados na cozinha, ao ler a lista percebeu que os pratos não seriam complexos ao longo da semana, fatalidade que a fez agradecer em silêncio até que assustou ouvindo passos atrás de si,

— Bom dia companheira de bordo!— Disse uma voz masculina, ela se virou rapidamente assustada, e deu de cara com um homem branco de olhos castanhos, cabelo aparentemente recém cortado, com um sorriso cortês, magro e vestido com o mesmo uniforme que ela estava prestes a colocar.
— Perdão, mas quem é você?
— A dona não lhe avisou? Sou seu assistente. Eu sou Lucas Lemiere.— Disse ele já com a mão estendida deixando mais claro ainda o bronzeado de quem parecia morar de frente pro mar, Bella sorriu de volta aceitando de imediato a surpresa, e decidiu que poderia conversar com Adam sobre a inconveniência de não tê-la avisado depois.
— Ela não me avisou, mas essa cozinha é tão grande que vai ser ótimo ter alguém para dividir, agora se você me dá licença, eu tenho de achar o nosso banheiro. — Segunda porta à direita, Cherie.
—Merci— Respondeu ela ainda que não entendesse totalmente o porquê ele havia feito a escolha de tratá-la naquela língua, pegou o uniforme dobrado e embalado em plástico em mãos, e se dirigiu em passos rápidos até o lugar indicado.
Ao retornar alongou seus dedos, e começou a procurar nos armários e na geladeira os ingredientes necessários para a preparação do almoço, ela e Lucas trocaram poucas palavras durante o processo,quando o aroma da carne assada na panela começou a subir Adam apareceu sem camisa, sem se anunciar na cozinha fazendo com que ambos paralisassem em suas funções, foi até a geladeira retirou uma garrafa d'água e virou as costas ainda sem dizer nada.
—Oi??? — Tentou Lucas enquanto o patrão andava a passos lentos para fora da cozinha.
— Ah, Bom dia— Ele disse se virando por alguns segundos enquanto erguia a garrafa já aberta, e bebia silenciosamente o líquido, os dois continuaram se olhando como se Adam estivesse esperando que o outro dissesse algo.

O jovem só curvou a cabeça olhando diretamente para o peito desnudo do outro com um olhar reprovativo, Adam percebendo finalmente o problema, respirou esse disse.

— Perdão, espero que não se importe daqui pra frente, com essa onda de calor eu voltei a ter esse hábito rapidamente, não foi minha intenção atrapalhar, por favor voltem ao trabalho.— Esboçou um sorriso e se foi, Bella voltou em câmera lenta para as panelas, com a imagem dos músculos perfeitamente desenhados e expostos, os pelos ruivos acastanhados desenhando um caminho extremamente interessante até a cintura, que mostrava um largo "V" para combinar com os largos quadris, e grossas pernas do mesmo. Era definitivamente um corpo de tirar o fôlego de qualquer mulher desprevenida, e fez os pelos em seu corpo se levantarem e sua pele se arrepiar muito mais do que ela previa, desligou o fogão deu um silencioso suspiro e sussurrou para seu assistente. — Por favor comece a preencher os pratos sem mim, faça a melhor armação que você puder, eu preciso.., Eu preciso ir...
— Você precisa tirar aquela imagem sem classe
e selvagem da cabeça, eu sei.—

Selvagem? Com certeza, aquela palavra de certo descreveria a visão do corpo do dono da casa, mas sem erro também descreve os sentimentos estranhos que vieram em sua cabeça ao mesmo tempo ao vê-lo, agora sem classe? Ela já não tinha tanta certeza.
—É tem razão, obrigada por entender— Finalizou e correu até o banheiro, trancou a porta e apertou o cristal verde escuro no meio de sua pulseira feita de cobre, inspirou e deixou-se sair.

Surgiu o reflexo de beleza monstruosa no espelho, as escamas de serpente com brilho esverdeado por cima de sua pele escura, os olhos profundamente certeiros e venenosos, e o sibilar que escapou de sua garganta antes mesmo que ela pudesse pensar em retrair.
— Pelos Ancestrais! O que foi aquilo?— As escamas brilharam e se aqueceram rapidamente.

—Não podemos ceder a esse tipo de provocação— Disse a mulher humana no espelho.
—Mas provocação do quê? Dele ou do destino?— Perguntou o monstro.
— De ambos— As duas concluíram. A maior dificuldade de ter uma entidade que falava dentro de si, transfigurava seu corpo em outro, e podia ter poder sobre outros corpos, era conseguir canalizar onde começava Zanri e onde começava a Bella. Agora estavam em polvorosa pela mesma imagem, o fogo seguia se alastrando em seu interior, como algo ridiculamente sem controle, mas ela precisava aguentar.
Apertou novamente o cristal, sentiu a leve dor da transformação enquanto fechava os olhos e ouviu outro sibilar dentro de si, trabalhar naquela mansão seria muito mais difícil do que ela pensou no começo.

O almoço foi servido prontamente pelos dois cozinheiros, que não ficaram próximos aos patrões para assisti-los, se sentaram em uma pequena mesa na área de serviço e passaram a comentar enquanto almoçavam.
— Eu sei que esta é a casa dele, mas custava se anunciar antes de entrar? E passar com aquele peito suado e peludo perto de você como se fosse nada? — Começou Lucas ainda enojado.
— Não foi nada tão grave assim, ok? Eu só me surpreendi pelo estresse do primeiro dia, nós vamos nos acostumar com o tempo, são nossos contratantes, eles merecem se sentir à vontade.
— Eu não sei onde você trabalhava antes mas, eu tô acostumado a ser freelancer para famílias ricas daqui, e grande parte dos senhores sempre se apresentaram com...— O homem sentado à sua frente gesticulava nervosamente, tentando emular a classe das outras casas, porém se parecia mais como alguém que tentava emular as asas de um pavão, e a negra se controlava para não rir.

— Mais educação?— Tentou ela,

— Isso! E além do mais, em que ano estamos?— Em dois mil e vinte três.— Pois é, e como que no século vinte um ainda existem homens que não se depilam? E onde ele vai parar com aquele cabelo? Em que mundo ele vive?—Se ele e a mulher dele estão satisfeitos, quem somos nós para opinar, não?— Pessoas sen-sa-tas. — Disse ele por fim, Zanri discordava das reprovações e admitia que sentia atraída pela certa selvageria no corpo de Adam que fazia um contraste interessante com o intelectual que ele aparentava na maior parte do tempo. Mas concordou com sinais, e alguns sorrisos tudo o que o outro disse, não queria e nem podia revelar o que realmente passava em sua cabeça todas as vezes que aquela imagem voltava, se deixasse tais sensações crescerem dentro dela, ela seria incapaz de sobreviver naquele emprego.

Tempero Sombrio (+18)Onde histórias criam vida. Descubra agora