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Escutei um barulho e fui ver o que era. Charlie tinha acordado. Passei tempo demais pensando no passado que esqueci dele. Charlie tem uma pequena deficiência; ele é surdo. Para mim, foi um grande choque. Quando ele era bebê, não emitia nenhum som, e quando eu o chamava, ele dava de ombros.

Achava que isso poderia ser algo passageiro, mas os anos foram passando e nada. Tive que reaprender a viver. Nesse meio tempo, nem me preocupava com os jogos, já que os tributos precisam ter uma idade mínima para terem seus nomes na colheita. O que, para mim, era um alívio passageiro, pois sabia que, uma hora ou outra, Charlie teria seu nome na urna junto com o de outras crianças para serem sorteadas para a competição.

Eu tentava não transparecer, mas estava com medo. Várias noites sem dormir pensando que não conseguiria lidar com essa situação. Mas aí, lembrei do tempo que tive que cuidar de minha mãe e também ser responsável pelas tarefas que eram dela.

Quando papai foi embora, tive que tomar as rédeas da situação. Então, eu limpava, arrumava, cozinhava e tentava motivar minha mãe a sair da cama. Ela só saía da cama para ir fazer suas necessidades, e quando ela se deparava comigo, dizia que estava bem e que essa situação que ela estava era algo passageiro.

Eu ainda frequentava a escola e, por sorte, conseguia comer algo lá. Mas para minha mãe, que nesse momento estava frágil, não conseguia preparar nada. Cabia a mim fazer algo. De começo, eu apenas fazia coisas simples: frutas e alguns pedaços de pão. Com muito esforço, aprendi a fazer chá. Foi aí que tive que me aventurar mais, pois frutas e pedaços de pão não nos iam nos sustentar para sempre. Tentei fazer uma sopa pela primeira vez; ficou bem mais ou menos. Na segunda vez, ficou sem sal. Mas, com o tempo, fui me aperfeiçoando.

Quando os mantimentos começaram a acabar, lembrei que era possível trocar coisas no prego, e lá fui eu. O prego era o lugar que podia se encontrar de tudo, desde animais para criação, tecidos e até álcool. Lembro que quando era mais nova, meu pai me levou lá. Só que naquele tempo, era ele quem fazia as negociações.

Para minha primeira tentativa, decidi levar algumas roupas minhas que costumava usar apenas quando iria ter a seleção de tributos para os jogos, a "colheita".

Me surpreendi quando adentrei as profundezas do prego. Percebi que algumas pessoas pareceram se lembrar de mim. Muitos comerciantes perguntaram sobre Thomas, e eu tive que falar a verdade. Algumas pessoas se sensibilizaram com a história e me deram algumas coisas. Só que nenhum dos comerciantes tinha interesse em fazer negócio; aparentemente, eles não tinham interesse em roupas de mulher.

Já estava perdendo as esperanças quando escutei alguém chamando. Foi difícil de escutar graças à cacofonia de vozes e sons que vinham do prego. Achei que era coisa da minha cabeça. Voltei a caminhar quando a pessoa chamou novamente. Me virei e vi uma senhora acenando. Fui em sua direção.

Ela tinha uma pequena barraca com os mais diversos tipos de folhas e temperos. Em uma mesa, havia uma pequena cesta com ovos e ao lado alguns legumes. Tinha até uma abóbora que, quando vi, conseguiu roubar toda minha atenção. Algo naquela pequena barraca me atraía.

A pessoa que me chamava era uma senhora. Era baixa, e em uma das mãos, carregava uma bengala. Usava um vestido azul, e nele havia algumas coisas. A única coisa que consegui identificar foi uma pequena pá de jardinagem, daquelas que se usam para mexer na terra quando se vai plantar algo.

Fiquei ali, analisando-a, quando ela começou a falar.

── Alguns desses alimentos são da minha plantação, enquanto outros consegui na base da troca.
── Eles parecem ser bem deliciosos.
── E aí, já sabe o que vai querer?
── Sim, uma abóbora, alguns ovos e algumas cenouras. Olha, senhora, desculpe tomar seu tempo, mas não tenho muito a oferecer.
── Não precisa me chamar de senhora; pode me chamar de Marceline. Mas você pode me chamar de Marcy. E você, como se chama?
── Prazer em te conhecer, Marceline. Ops, digo, Marcy. Me chamo Rosé.
── Prazer em te conhecer. Vamos aos negócios.

Eu entreguei as roupas que levei para Marcy. Ela as analisou com a maior calma e paciência, virou-as do avesso, olhou as costuras e, por fim, deu seu veredicto.

── Essas roupas estão impecáveis. Onde conseguiu?
── Bem, essas roupas eu costumo usar para colheita, mas como estou passando por alguns problemas, decidi que o melhor que poderia fazer era trocá-las.
── Entendi. Eu vou te ajudar. Como suas roupas estão em ótima qualidade, vou colocar as coisas que você pediu em uma sacola e ainda vou adicionar umas coisinhas a mais. ── respondeu a senhora com um sorriso.
── Muito obrigado, Marcy.
── Marcy, o que são todas essas folhas?
── Bem, querida, eu uso elas para duas coisas: para fazer chá e também no tratamento de alguns males.
── E como funciona?
── Primeiro, vai depender do que o paciente vai estar sentindo, querida. Se ele tiver dores no corpo ou só dor de cabeça, ela pode apenas mastigar essa folha aqui que, em algumas horas, vai estar bem. Agora, se o paciente tem algo como um corte ou queimadura, com as folhas, eu faço um unguento e aplico na região onde teve o corte ou queimadura.
-Obrigado pela explicação.

Eu não sei se era o cheiro da pequena barraca ou o fato de que a senhora foi a única que quis fazer negócio comigo. Aquela pequena barraca me trazia uma sensação boa de conforto que eu não senti desde aquela vez na árvore com meu pai.

Quando Marcy estava terminando de empacotar as coisas, chegou um garoto na barraca. Ele carregava uma caixa com algumas coisas dentro.

── Marceline, as coisas que você pediu estão aqui.
── Obrigado, meu querido.
── De nada. Sempre que precisar, estarei aqui pra ajudar.

Aquele menino parecia ser somente um ano mais velho que eu. Ele tinha um ar de cansado, como se a vida estivesse castigado ele e assim acabou deixando marcas que são visíveis. Ao mesmo tempo, transmitia a sensação de ser alguém paciente e bondoso. Algo nele chamou minha atenção.

Nesse momento, Marcy me entregou as sacolas. Eu agradeci e segui sentindo minha casa, mas sem antes não pensar naquele menino.

Beyond the games : A Jornada no Mundo dos Jogos VorazesOnde histórias criam vida. Descubra agora