Prologo

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Minha sala estava um caos, eu estava um caos. Minhas unhas roídas e quase sem esmalte, e meu cabelo meio — Quase completamente — frizzado. Ele estava preso com mechas da minha franja soltas mas passadas por detrás da orelha. Eu vestia religiosamente minha calça preta e casaco da Redbull pra ir trabalhar, e bom era isso que eu estava fazendo.

Ou tentando fazer na realidade.

Eu encarei o grande quadro branco por mais alguns segundos, ele estava caótico e organizadamente desorganizado. Meus cálculos, especulações e anotações espalhados por toda a extensão do quadro deixavam ele preenchido e um pequeno quadrado no canto esquerdo marcava a pista numa escala média. Os cálculos do carro estavam escritos todos contornando essa área, e bom, era o que eu sabia fazer de melhor.

Ajeitei meus óculos melhor olhando e analisando mais uma vez o maldito quadro, na minha mão eu rodava um pincel piloto de quadro branco. Rocei os meus cotocos de unha mais uma vez na minha nuca— Como se isso fosse me dar uma resposta repentina para o problema dos pistões do carro, que era no que eu atualmente estava presa— quando Cristian Horner entra na sala.

Eu apenas lhe dou um breve olhar dizendo um baixo "oi" e volto minha atenção pro problema na minha frente. Sinto a presença de Horner quase atras de mim, ele pigarreia e eu o olho, ele está com as sombrancelhas franzidas e com a cara parecendo um xuxu enrugado. Ele limpa a garganta e com as mãos no bolso me pergunta:

-Então, é esse o RB20?- Ele se aproxima da lousa vendo o esboço que eu desenhei da carcaça do carro, que foi aprimorada pra em retas deixar o carro mais rente ao chão.

-Bom, mais um esboço do RB20, eu não to conseguindo conciliar a carcaça com o formato dos pistões- O modelo "V" de um motor alinha os pistões seguindo esse padrão, deixa mais leve e compacto e o melhor, com mais potência.

-A propósito, vamos ganhar o campeonato de construtores na próxima corrida, você deveria vir prestigiar o próprio trabalho- Horner comenta dando um leve empurrão no meu braço. Eu ajeito o óculos novamente e o respondo.

-Você sabe que eu não gosto do paddock Cristian- Eu tampo e destampo o pincel piloto como um mecanismo pra aliviar a ansiedade iminente.- Eu estou muito bem apenas projetando os carros.

-Você quem sabe- Ele diz meio decepcionado eu acho- Bom o relatório do último final de semana está aqui, os problemas da suspensão foram devidamente resolvidos.

-Tinham que ser em algum momento, agora eu to tentando estabilizar o RB20 pro Bahrein, pra ele não ficar- Pauso rapidamente e pego o relatório do Bahrein desse ano e leio um termo que deixei circulado- "Pulando que nem um canguru" como diz o seu piloto

Solto o arquivo observo mais uma vez a pista.

-Nesse ano o Bahrein foi realmente complicado, o nosso piloto estava seguindo o traçado de fora aqui e dentro aqui- Horner aponta mostrando e me deixando incrivelmente confusa, será que o piloto deles sabia realmente pilotar? Esses eram os caminhos mais lentos teoricamente pro carro, limpos mas lentos.

-Me desculpe a intromissão no jeito que seu cara pilota, mas é um jeito burro- Eu me aproximo da lousa e Cristian me olha intrigado, ao momento que eu ando ate a lousa ele se senta apoiado na mesa.

Eu destampo meu pincel e pego uma lousa adjacente redesenhando o circuito numa escala maior.

-Olha- Falo e faço algumas marcações e anotações-Isso não é achismo, eu consigo te provar empiricamente qual é o melhor traçado.

Eu falo e começo a desenhar as linhas explicando por que uma diagonal é a menor distância entre dois pontos e a melhor posição de largada, o melhor jeito de se ultrapassar, explicando mais as curvas.

-Quanto as retas, até o começo do ano eu consigo ajustar o carro pra ficar mais colado, esse ano ele foi muito bom e mostrou muita dominância- Cristian escutava atentamente- Esse ano ele vai ser melhor.

Eu digo e recuo da lousa, o silêncio se faz presente na sala, o rosto de Horner não é mais uma confusão, ao menos não parece ser mais.

-Bom, é verdade- Ele fala simples e se levanta- Ótimo trabalho com o carro, Di Minori, de verdade, ótimo trabalho.

-Obrigada Cristian- Eu digo e fecho meu pincel pegando o relatório da semana.

-Bom, esse final de semana você não vai poder escapar, depois de ganharmos o campeonato de construtores eu e Helmut Marko vamos organizar uma festa de gala para homenagear os funcionários da scuderia, você precisa vir.- Ele fala me intimando, mais como uma ordem, como se fosse vital para o trabalho

Eu suspiro delicadamente

-Tudo bem, irei à gala- Mesmo cada celula do meu corpo implorando pra que eu não vá e fique em casa estudando. Horner se surpreende com a velocidade que eu concordo.- Sei que não tenho como recusar mais.

Sorrio torto pra ele que, agora com um semblante mais feliz, me diz um breve "Adeus"

Volto mais uma vez a minha atenção para os problemas de cálculo na lousa grande, me apoio na mesa e passo o resto da minha tarde produzindo e testando modelos e formas de como concertar o balanço do carro que o tal piloto quer resolvido. Afinal, minha vida era isso, trabalho, trabalho e mais trabalho ainda.

Isolar meus pensamentos quanto as pessoas e foca-los no meu objeto de trabalho era mais fácil do que parecia, se entupir de cargas horárias extras e respirar a produção do carro tinha se tornado minha vida há muito tempo atrás. Talvez eu tenha me perdido no meio do caminho.

A gala que aconteceria em alguns dias seria o evento social mais difícil que eu tive que participar em 2 anos trabalhando incessavelmente pela Redbull. Eu nunca ia nos eventos ou premiações, quase fazia questão de não ir e deixar que os meus troféus ficassem na prateleira do hall de entrada do grande QG da empresa.

A verdade, é que era simplesmente muito mais fácil matar minha vida social e viver pro meu trabalho do que realmente conversar com as pessoas, e ainda assim, aqui eu estou, aceitando um convite para um evento chique da minha empresa e me revelar novamente ao mundo.

Já tinha aceitado, ou quase isso, então voltei a focar no meu projeto. Peguei o relatório que Horner deixou na minha mesa alguns minutos atrás e fui analisá-lo, o desempenho estava bom, mas eu precisaria aumentar um pouco a potência pro piloto campeão poder fazer os donuts no final da corrida.

Revirei os olhos vendo os comentários do primeiro piloto acerca do meu carro. Não fiz questão de conhece-lo a fundo, apenas saber as suas preferências de pilotagem era suficiente para meu trabalho e quanto ao segundo piloto, esse foi mais um final de semana que ele arregaçou meu lindo carro na brita. De novo.

"Falta estabilidade", "O carro não para de pular", "O carro perdeu tração! PORRA" eram um dos mais doces comentários do primeiro piloto.

Suspiro pegando um post-it e anotando a minha lista de afazeres no carro para o final de semana. Seria uma longa, longa semana.

Peguei meus fones com isolamento acústico e os coloquei escutando uma música muito alta e hediondamente pornográfica em português com uma batida estupidamente atraente. Um funk.

Era pra mim o melhor jeito de fazer a única coisa que eu realmente sei fazer, trabalhar. E a melhor coisa de tudo isso é saber que eu ainda tenho uma parte em mim que as minhas raizes não se desprenderam.

Uma parte de mim que não foi perdida completamente.

Let it Flood- [M.V]Onde histórias criam vida. Descubra agora