NUNCA SE TEM UM DIA NORMAL

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Não pude esperar que o Ego me despertasse, conforme era habitual. Não naquele dia. Involuntariamente, eu despertei sozinho – eu sei, até mesmo eu me surpreendi, – bem antes da luz do dia atravessar a vidraça, ou seja, a pouca luz do sol que pode fazer naquele inferno. Foi o toque da ansiedade que me despertou, eu acho. Não consegui dormir direito naquela noite. Por mais que tentasse fechar os olhos e me afastar da consciência, os efeitos que acometiam o meu corpo naquele planeta ainda me deixavam desconfortável.

Claro, já se haviam passado, exactamente, dois meses terrestres desde a minha transferência e era suposto eu me ter habituado àquela altura com aquele planeta. Porém, ainda passava mal as vezes. Sentia tonturas, enjoo e fortes dores de cabeça. Nalgumas vezes os pulmões pareciam apertados, com falta de ar e a visão ficava desfocada. Exactamente igual ao dia em que cheguei. Não fosse pelo Eco-traje, a sua regulação automática da massa e do oxigénio, talvez eu não sobreviveria.

"Bom dia, Sr. Útima. A pressão arterial é de 130/85 mmhg. Batimento cardíaco é de 80 p.m. Temperatura corporal é de 28ºc. Tome as medidas necessárias para ter um dia saudável e produtivo. Hoje são 02 de Corda do ano 230 D.C. A previsão meteorológica de hoje aponta para céu parcialmente nublado e com chuvisco à uma temperatura de 26ºC ao norte e..."

– O que tenho agendado para hoje, Haida?

"O Sr. Se encontrará com Marlus Adark. É a única actividade agendada para hoje, Senhor."

– Eu sei.

Para ser franco, eu preferia ficar no pequeno apartamento e dormir o dia todo. Mas, obviamente, seria impossível. O velho Marlus não era um homem para se deixar pendurado. Além disso, eu também não sou do tipo que adia o que tenho para fazer. Levantei-me da cama e me dirigi à vidraça, ficando transparente com a minha aproximação, revelando a deprimente paisagem do Bairro Vermelho, um bairro operário na periferia da Cúpula, bem na escuridão esquecida, intocada pelos Sangue Azul, a classe dominante, habitantes do Hperium. Os mesmos que prometeram sucessos e riquezas aos primeiros homens e mulheres que iniciariam a terra-formação de Marte. Agora circulavam rumores, cada vez mais preocupantes, de que eles se autoproclamavam os novos senhores de Marte. Porém, uma coisa era verdadeira, estes homens esqueceram-se das suas promessas aos primeiros habitantes de Marte, sequer pareciam conscientes da sua existência, como se as suas ruas e esgotos se limpassem sozinhos, ou a energia que utilizavam não precisasse de pessoas qualificadas para funcionar, ou pior, como se o continum se extraía e se refinava por si.

Bom, pouco me importava mesmo. Eu não era eles e sequer os conhecia. Na verdade, eu preferia nem os conhecer. Embora agora estivesse no mesmo bairro, eu não pertencia àquele lugar. É isso. Eu apenas vivia no mesmo bairro. Não era como eles. Nem pretendia sê-lo.

Não fosse aquela maldita transferência, eu ainda estaria na Terra, monitorando a segurança da cidade que eu bem conhecia. A Terra é o meu verdadeiro lar. Já aquele povo, Marte é o lar deles, uma vez que são descendentes dos primeiros homens. Sim, são descendentes de terráqueos. Contudo, olhando para eles, era inevitável ter uma sensação de Vale da Estranheza. Suas fisionomias são apenas próximas a nossa, humanóides. Muitos aspectos nos diferenciam deles, para começar, eles possuem olhos mais arregalados e escuros de pupilas dilatadas, adaptadas de modos a enxergarem naquela luminosidade pobre, seus membros são bem mais esbeltas e delgados, em questão de altura, a média por lá é bem mais alta que a média dos terráqueos, além de muito mais pesados e pálidos.

O sol finalmente decidiu se revelar, um insignificante ponto amarelo-branco sob um céu avermelhado, difícil de acreditar que era maior que o planeta. Felizmente, a Cúpula tinha o seu próprio ecossistema, seguindo os mesmos princípios que as antigas estufas de plantação. Nuvens acinzentadas esparsas flutuavam no alto anunciando o prelúdio de um chuvisco. Mas ela nada fazia com respeito à gravidade fraca.

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