Som ao Entardecer

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Alastor odeia Lúcifer. Isso é um fato imutável. Não é um ódio simples de ser sanado e muito menos, diminuído. A corrente em seu pulso é um lembrete colérico de que não pode se distanciar do odiado Morningstar. Odeia o ronco estrondoso do loiro de madrugada, a tremenda falta de habilidade culinária, a obsessão maníaca por patos, a bengala de maçã - somente ele poderia ter uma bengala, e a mania irritante de fingir que está tudo bem.

Lúcifer não está bem. Alastor sabe disso e não se importa. Nem um pouco. A única coisa que o atinge é o quão insuportável é a cara de cachorro abandonado do Morningstar pelos cantos quando se lembra da ex-esposa. Sinceramente, o radialista também abandonaria esse cara.

Entretanto, há algo que desperta sua curiosidade. Ele não sabe ainda o que, mas anseia por desbravar as nuances escondidas do loiro, seus medos e desejos. Todo o ódio reprimido se volta em uma espécie de bússola que aponta exclusiva e unicamente para Lúcifer Morningstar.

A conversa na sacada, ao fim da festa de Sir Pentions, trouxe certa empatia. O anjo possuía ideais de liberdade com autonomia. Ele lutara para que pessoas horríveis como o próprio Alastor pudessem cometer as atrocidades que fizeram em vida. É impossível de um fio de compaixão deixar de nascer no coração do radialista.

O demônio entende a irritação dos irmãos de Lúcifer, ele também não gostaria de uma criança tão engenhosa e animada como irmão. Facilmente perderia a paciência com um serzinho pimpolho correndo pelos cantos construindo patos.

Uma curiosidade atípica, um sentimento irrevogável e uma caixa de som. As tardes deles são maçantes,  porém, não precisa ser assim.

No dia seguinte ao jantar com Mammon, diferentemente das demais tardes, Al posicionou sua amada caixinha na mesa e duas poltronas próximas à janela, apreciando a belíssima paisagem infernal e a lua de pentagrama.

"Que isso, garçom?" A voz irritante do angelical questiona assim que sai do banho, os cabelos ainda molhados.

"Creio que esteja entediante nesse quarto, por isso, ocupei-me de trazer certo entretenimento para ambos."

"Tanto faz. Só não me incomoda, beleza?" A toalha nas mãos do menor enxugam seus fios umedecidos.

"Ah, mas Senhor Morningstar." O cervo o para abruptamente. Luci o encara, confuso e impaciente. "Imaginei que poderíamos ouvir canções juntos. Como parte do nosso acordo de convivência."

O demônio aperta a bengala, inseguro. Curiosamente, esse angelical também o faz sentir certas emoções estranhas. O silêncio do companheiro de corrente machuca o ego do mais alto.

"É bom." O governante se senta na poltrona. "Que música vai pôr?"

"Uma que eu adoro." As garras do vermelho apertam o botão da caixa, que inicia a melodia.

Killing me Softly with his song.

Alastor senta-se ao lado do homem. Desliza seu olhar pela feição descansada e límpida daquele anjo delicado. Tudo nele é tão pequeno e gracioso. A faceta pueril contornada pelo dourado de suas madeixas e rosadas pelos dois pontos de circulação nas bochechas. As sobrancelhas grossas que contrastam com a meiguice do rosto. As unhas negras e compridas lembram que não se deve mexer com Luci. Quase que cômico que esse ser é o dono do Inferno.

A melodia adocicada dança em seus ouvidos. Lúcifer parece gostar também, fechando os orbes e batendo o dedo no braço da poltrona no ritmo da canção. Al respira aliviado pelo alado ter apreciado.

"Eu te dedicaria essa. É quase como me sinto sobre você nesse momento. Claro, se você tivesse alguma chance de me matar."

A frase dita em tom baixo surpreendeu o pecador, que arregalou os olhos para o anjo. Esse merdinha pensa que está no controle. Mal sabe ele.

Alastor também odeia essa prepotência do governante.

"Não seja tão convencido. Posso matá-lo quando eu quiser."

"Tente." Responde, ainda de olhos fechados.

"Eu tentarei."

Assim, eles dividem aqueles metros quadrados. Um entardecer melódico e ameaças de morte são essenciais para a felicidade do cervo.

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A música é Killing me Softly with his song,  versão da Roberta Flack.

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