PRATELEIRAS

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Era, pois enquanto estava no caminho para a sede onde Celso trabalhava, Cassandra recebeu a notícia trágica acerca de uma catástrofe..

O Supermercado Boa Compra era uma gigantesca construção que ocupava uma quadra inteira. Um enorme barracão, com dezenas de prateleiras colossais, repletas de fardos e caixas de produtos que eram vendidos tanto no atacado quanto no varejo. Na altura dos olhos e das mãos dos clientes, ficavam os produtos que eram vendidos por varejo, organizados como em qualquer gôndola de estabelecimentos comerciais da mesma natureza. Entretanto, nas partes de cima e de baixo das gigantescas prateleiras, estavam guardadas e empilhadas grandes embalagens lacradas, cheias de produtos. As pilhas alcançavam o teto. . Havia toneladas de mercadorias, acima das cabeças de todos, sustentadas por metal.

Uma dessas grandes prateleiras cedeu. Despencou A gravidade e todas as leis da física cumpriram bem os seus papéis, causando um efeito dominó nas demais prateleiras, arrastando e esmagando tudo o que estava pelo caminho, em uma velocidade vertiginosa. O som foi ensurdecedor. Começou com um agudo retinir de metal se retorcendo, passou para pancadas estranhas, um pouco abafadas, das mercadorias caindo e se chocando contra o chão, até que se iniciou o caos de gritos, avisos e estrondos em uma cacofonia indistinguível de terror.

Os bombeiros já tinham confirmado vinte mortes até aquele momento, quando Cassandra foi chamada para ajudar. Os corpos eram paulatinamente retirados dos escombros, dos montes de caixas e fardos de mercadorias. A prioridade era encontrar sobreviventes e resgatar os restos mortais das vítimas que permaneceram inteiras.

Alguns corpos esmagados estavam misturados com mercadorias as avariadas. Uma metade de pessoa sobre uma poça azul, rosa e roxo, ao lado de galões de amaciantes. Uma mão decepada próxima a alguns pacotes de macarrão parafuso e cabelo de anjo; havia uma aliança dourada no dedo anelar, as unhas pintadas de azul e o nervo radial sobressalente pelo chão. Um olho avulso, castanho, fitando uma garrafa de vinho tinto, quebrada. Alguns dos corpos tinham seus membros tão esmagados que podiam ser catados do chão com uma pá e um rodo; o tecido adiposo de alguém, com o cérebro de outro alguém, junto com o extrato de tomate. Ossos, pontas de ossos, cacos de ossos despontando em todo lugar. Os corpos que estavam inteiros tinham contado com um milagre. Os sobreviventes rezavam pela delicadeza dos socorristas, para que as toneladas de mercadorias não deslizassem sobre si e os matassem também. Aqueles que gozavam de integridade física e já tinham sido socorridos, possuíam olhares catatônicos graças ao estado de choque de quem tinha saído para fazer uma compra e terminou com o nome marcado em letras de sangue nas páginas da História. Cassandra viu tudo através de registros compartilhados em um grupo interno da Polícia.

A região do supermercado era uma área extensa e de muito movimento, um quarteirão inteiro ao lado do shopping da cidade, e as forças de segurança estavam com dificuldades para conter a multidão e fazer os resgates ao mesmo tempo, por isso pediram a ajuda de Cassandra e de outros membros da polícia.

Embasbacada, a investigadora dirigiu pelas ruas, tentando apagar de suas retinas o que viu nos registros. Notou, durante o seu trajeto, que muitos carros convergiam para aquela região, e, como estava chegando o horário de almoço, tudo tendia a piorar. Principalmente porque o Supermercado Boa Compra estava localizado em uma região onde naturalmente já existia grande fluxo de pessoas. Conforme chegava perto do local, Cassandra percebeu que a quantidade de carros estacionados nos locais permitidos aumentava de forma desenfreada.

A investigadora resolveu pegar uma vaga a cinco quadras de distância, e acertou nesse passo, porque as vagas perto do supermercado estavam lotadas. A multidão de curiosos se acumulava. A duas quadras de distância já era possível ouvir o burburinho e o som caótico das sirenes. A duas ruas do destino os cones de sinalização do órgão regulador do trânsito já estavam posicionados, com agentes impedindo a passagem de carros, motos e ciclistas que desejavam burlar o esquema de segurança.

Ao atravessar uma rua para chegar até o local da tragédia, os ouvidos de Cassandra captaram com nitidez os gritos de desespero que vinham do âmago do ser. Quando virou a esquina, ela constatou com os próprios olhos o quão desesperadora estava a situação. Havia viaturas, caminhões do corpo de bombeiros, ambulâncias do SAMU e muita força policial. Tanto agentes da Polícia Civil quanto da Militar tentavam conter a multidão que queria invadir o espaço por diversos motivos. Com muita dificuldade, Cassandra passou dentro do formigueiro humano, sendo acotovelada, quase se chocando com paus de selfie e celulares levantados para capturar a desgraça. Na frente de todos estavam os repórteres, tentando garantir seu quinhão de notícias, e familiares desesperados, se agarrando nas grades verdes do estacionamento, cujas entradas, apesar de inseguras, não podiam ser trancadas para facilitar o socorro das vítimas. As pessoas chamavam por familiares que supostamente estavam perdidos por lá.

— Cassandra! Cassandra, aqui! — Wilson, policial civil que tinha ligado para a colega, acenava freneticamente em um dos portões.

A mulher, apesar de evitar ao máximo a violência para não machucar os civis presentes, se viu obrigada a empurrar para conseguir passar. Quando terminou de entrar, ainda havia uma pessoa segurando sua camiseta de uniforme, em completo desespero, com rosto vermelho, banhado por lágrimas, e com os cabelos desgrenhados de um coque que já tinha sido perfeito. Perguntava pela filha enquanto exibia uma careta terrível de desespero. Cassandra jamais se esqueceria, pois a mulher estava calçada com um chinelo de cada cor.

— Wilson, que sufoco! O "trem" está feio, nem consegui atalhar. — Cassandra limpou um pouco de suor da testa.

O sol já estava a pino e ela sabia bem que logo haveria gente passando mal no meio da multidão, além dos inevitáveis roubos e furtos que dariam mais trabalho para a polícia.

— Oro para que não comece um efeito manada nesse lugar, pois seremos incapazes de conter essa boiada. — Wilson era evangélico da Assembleia de Deus. Muito religioso.

Cassandra não tinha as mesmas crenças, mas comungava de sentimento semelhante ao receio do colega.

— Logo as pessoas se dispersam. Não vão dar conta desse sol tórrido, de arrebentar mamona. — A mulher cruzou os braços na frente do peito para se tornar mais imponente. — A minha função é essa? Ficar aqui?

— Sim. Não deixe as pessoas passarem. Contenção no braço porque não podemos usar "fogo". — Wilson era um homem baixo, negro, de barba crespa, basta e tão preta que brilhava sob o sol.

Um homem alto e emocionado tentou empurrar Cassandra para entrar. Tomou um golpe no estômago que fez suas forças se esvaírem.

— Ainda bem que isso é função do Ministério Público do Trabalho. Esse pepino não vai cair na minha conta, porque o que a repercussão desse caso vai gerar de dor de cabeça... Pobre de quem for encarregado. — A investigadora já lamentava pelos inúmeros protestos e cansativos processos que se seguiriam para as famílias das vítimas.

— E vai ofuscar o seu caso atual também. — Wilson lançou um olhar significativo na direção de Cassandra.

Ele tinha razão.

Ela esperava resolver antes que as pessoas se lembrassem do ocorrido no Parque Brito. 

Assassinato no Parque BritoOnde histórias criam vida. Descubra agora