Cassandra se sentia como um punhado de carne moída quando chegou em casa naquela noite. Uma carne que tinha sido soprada o dia todo pelo bafo do inferno e já estava começando a feder. Perdeu muito de seu tempo naquele caos, ao ponto de sentir que a cabeça pesava mais do que o resto do corpo, de tão cheia de pensamentos e lembranças de gritos. Genuinamente supôs que o sol faria com que as pessoas dispersassem, mas ocorreu o contrário, afinal, parecia que a cidade toda resolveu se juntar por lá, congestionando algumas ruas e atrapalhando o trabalho de resgate. Já caía a noite quando a turba minguou e ela pode sair de seu posto improvisado. Um dia de sua investigação tinha ido para o lixo porque o ser humano não se aguentava de curiosidade.
No fim, depois do anúncio de que todas as vítimas, mortas e feridas, foram retiradas do local, as pessoas se dispersaram. Faltavam ainda os que estavam esmagados, porém a equipe de resgate resolveu que abafar a informação era melhor para que a sua ação continuasse de maneira efetiva. Cassandra até deu uma espiada no interior do supermercado e viu as prateleiras esgarçadas com mercadorias despencadas para todo canto, misturadas com entulho e corpos. Ela engoliu seco, se arrependendo.
Considerou que a situação se tratava de um baita prejuízo sob vários pontos de vista. A responsável pelo mercado, Virgínia Tamanduá, já tinha se pronunciado, dando as condolências e dizendo que iria colaborar para que a justiça fosse feita.
Cassandra riu da ironia da situação, onde a provável causadora da tragédia ganhava ares de heroína ao se dispor a arrumar a própria bagunça. Certamente havia alguma irregularidade por lá, ou muitas, porque as pessoas tendiam a enxugar os gastos ao máximo para acumular capital e acabavam economizando onde a lei nem permitia, se fiando na sorte para que nenhuma tragédia ocorresse. Sempre acontecia. Cedo ou tarde, acontecia.
Com o corpo todo dolorido, a investigadora colocou o carro na garagem, fechou o portão, destrancou a porta da sala da casa com o barulho de seu molho de chaves ecoando no silêncio. Entrou na casa sem ligar a luz porque a claridade do crepúsculo ainda permitia ver o caminho. Foi direto para o banheiro, onde finalmente apertou um interruptor branco e retangular.
A luz fria foi acesa e Cassandra viu seu rosto exausto refletido no espelho quadrado do armário pequeno que ficava na parede, acima da pia. Após jogar a calcinha de algodão dentro do cesto de roupas sujas, de plástico, atravessou para o outro lado da parede do box de vidro e ligou o chuveiro elétrico na temperatura mais quente. O som de fervura anunciou o início do banho. A mulher apoiou as palmas das duas mãos na parede de cerâmica bege e deixou a água quente correr pela pele, levando consigo muito da tensão, enquanto pensava, de pálpebras cerradas, em tudo o que deveria fazer no dia seguinte. Teve um pouco de dificuldade de se concentrar no que importava porque as imagens de corpos esmagados ficavam saltando na frente de suas conjecturas, como jumpscares autoimpostos.
Saiu do banho alguns minutos depois, após escovar os dentes, se sentindo ainda cansada, mas renovada. Enxugou-se com uma toalha amarela enquanto suspirava com força. Vestiu quaisquer roupas pretas e folgadas que viu pela frente, uma calça de moletom e uma camiseta larga. Decidiu que estava cansada demais para cozinhar. Só tinha comido os pães que havia comprado mais cedo, acompanhados do suco quente, enquanto voltava para casa. Uma mão no volante e a outra fazendo malabarismos, tremendo pela falta de alimentação. Comeria um Xis ou podrão de lanchonete de praça, que na opinião de Cassandra era melhor do que hambúrguer de fast-food famoso. Enchia mais o estômago pelo mesmo preço ou menos, se pegasse uma boa promoção.
Calçou um par de chinelos de dedo, de borracha, na cor azul petróleo, e foi caminhando devagar, contando passos, até uma praça próxima de onde morava, onde havia uma pequena lanchonete, o Xis Delícia.
A lanchonete tinha telhado de zinco. Possuía dois cômodos por dentro, sendo a dispensa e a cozinha, onde tudo era muito gasto e um pouco velho, mas bem higienizado. Podia-se ver uma pia branca com uma torneira de aço inox logo acima dela. Dispunha de freezer, geladeira, uma grande chapa, caixas de mercadorias guardadas, uma fritadeira profissional e lixeiras com tampas bem fechadas, além de um armário com três compartimentos pequenos. A parede da frente tinha uma abertura grande, onde ficava o balcão de atendimento. Ali podia-se fazer o pedido, pagar ele no caixa, que ficava atrás de um baleiro de compartimentos transparentes com mercadorias coloridas, chamativas, e também pegar o pedido. Do lado de fora havia um banheiro, na parte de trás. Na frente do balcão ficavam dispostas mesas de alumínio, com pernas dobráveis, e cadeiras de plástico que eram bem desconfortáveis, mas serviam bem aos clientes, que não demoravam.
Chegando no lugar a investigadora agradeceu mentalmente porque ainda estava vazio e ela não precisaria aguardar uma eternidade pelo pedido. Escolheu uma mesa em um canto mais escuro depois de soltar um cumprimento geral para os trabalhadores. A mesa se situava debaixo de uma das frondosas árvores da praça. Uma das funcionárias, Fernanda, trouxe o cardápio e piscou com um olho para a investigadora, emanando uma energia mais do que amistosa.
— Boa noite, Cassandra. Vai pedir uma bebida para começar? — Questionou com um sorriso largo, mostrando todos os seus dentes grandes e um pouco amarelados pelo consumo excessivo de café.
Estendia um cardápio que consistia em um grande folheto colorido, plastificado, com algumas fotos de lanches feitos ali, postas sobre um fundo colorido de tons quentes. No folheto havia uma lista de opções, em coluna, separadas por seções, de acordo com o tipo. Cada opção com uma explicação abaixo, em letras miúdas, e o preço ao lado, em fonte destacada.
Cassandra pegou para não deixá-la com a mão estendida.
— Boa noite, Fernanda. Traz uma cerveja... A de sempre. Nem vou olhar o cardápio também, pode ser um X-Tudo no capricho com queijo a mais, acompanhado de suco de laranja, para ajudar na digestão. — A investigadora entregou o cardápio de volta e Fernanda segurou na mão dela.
— Quando vou ter uma chance? — Perguntou, fitando nos olhos e depois encarando fixamente os lábios da cliente. Eles arquearam para cima, em um sorriso discreto.
— Depende... — A investigadora suspirou, pensando em dispensar, mas resolveu flertar também.
— De quê? — Fernanda indagou, surpresa. O coração deu um salto no peito. Fazia um bom tempo que Cassandra ia ali, mas era a primeira vez que dava uma abertura para ela.
— De quão longe você mora daqui. — Infelizmente Cassandra não podia deixar que as pessoas casualmente vissem sua casa, também não queria frequentar o motel porque estava sem paciência para disfarçar um pouco a aparência. Achava arriscado deixar que notassem ou marcassem com quem saía, sobretudo pela profissão que tinha.
— Uai? Eu moro na quadra de cima, mas a minha casa é bem humilde. Apenas três cômodos. — Fernanda olhou com expectativa, apesar de estar tomada pelo receio de uma rejeição. Sua voz soava até um pouco engasgada.
Cassandra sabia que existia gente elitista no mundo, mas recusar uma "ficada" porque a outra pessoa tinha acomodações simples? As pessoas sabiam ser fúteis de toda maneira.
— Que horas você sai do trabalho? — A investigadora perguntou casualmente.
— Duas horas da manhã. Depois de fechar nós limpamos. — A voz de Fernanda minguava a cada palavra. Estava arrepiada e envolta em um misto de sentimentos que ia desde a euforia até a incredulidade.
— Nesse horário estarei aqui para pegar você. — Cassandra sorriu, maliciosa, para a funcionária do estabelecimento, que deixou transparecer na expressão o seu estado de euforia.
Fernanda só não gritou e deu pulinhos de alegria porque estava no trabalho, contudo, não continha o sorriso bobo e o olhar contente de quem finalmente tinha vencido, depois de muito persistir. Seus pensamentos, a partir daquele instante, estavam completamente voltados para Cassandra. Esqueceu-se de todos os problemas: boletos atrasados, notas ruins na faculdade, a mãe com dengue, o gato que morreu cinco meses antes, a goteira na cozinha... Não existia mais nada.
Cassandra comeu o seu jantar, mastigando devagar enquanto assistia a uma partida de futebol em um monitor de tela plana, instalado por ali na força da fé. Voltou para casa depois de comer, andando devagar, com as mãos enfiadas nos bolsos, escutando música tranquila em seus fones de ouvido, cumprimentando transeuntes e olhando para as estrelas de vez em quando. Entrou na morada, deixou o par de chinelos na porta, caminhou até a cama, onde se jogou, ligou o despertador para que tocasse às uma e meia da madrugada, e cochilou. Merecia descanso e diversão depois do dia de humano, porque um cão vivia melhor.
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Assassinato no Parque Brito
Mystery / ThrillerTetragonisca Angustula é o nome científico - e branco - de um poderoso e belo inseto de cor dourada. Uma abelha sem ferrão, pequena, nativa de regiões latino-americanas, que produz um delicioso mel, cuja suavidade é incomparável. Não fosse o suficie...