19 - Vazio

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- Não deu o tempo de tirar essa porra ainda não, Marcinho? Tá maluco, mano, essa parada tá me dando dor de cabeça já! - reclamo, agoniadão. O produto que ele passou pra descolorir arde muito.

- Falta cinco pra ficar o aço, chefia. - ele anunciou, conferindo no relógio.

- Caralho... não aguento mais, nao! - envaziei a garrafinha de água na boca, pra ver se funcionava de algum modo como um anestésico. A coceira e ardência permaneceram.

Ninja, encostado na mureta da laje, perto do Marcinho e dos seguranças, embrazandão de whisky, começa a rir, assim como geral. Quando acaba a graça, voltam a trocar ideia. Eu já nem sabia mais qual era o assunto da vez - mudava toda hora, na velocidade da luz, nego falando um por cima do outro e gargalhando de qualquer besteirinha. Sem mencionar a música alta.

Durante o tempo de ação do produto, respondi brevemente à mensagem que Yara mandou pra saber onde eu estava, que desde ontem me esqueci que ela existe. Agora virou policia nesse caralho!

Avisou também que iria pra casa de uma colega e chegaria umas sete. Só perguntei onde essa colega morava e parei de responder. Não ia dar margem agora, ainda mais estressadão com esse bagulho derretendo meu couro cabeludo.

- Ah, quer saber de uma? Se foder, meu parceiro - me levantei, cansado de esperar, e fui até a mangueira. - Libera essa água ai. - trovejei, me dirigindo ao Bazuca, morgadão ao lado da torneira.

- Espera o tempo certo, cara! Tá ligado que não vai ficar aquele nevou de cria, se tu tirar o bagulho agora, neh? Orra, frescão! - Ninja gritou, tentando me deter.

- Mané esperar! Bora, liga essa porra ai, caralho! - rugi categoricamente, a cabeça fervendo. Não ia ficar com isso mais nem um segundo.

Quando a água vazou pela ponta da mangueira, mergulhei a cabeça em baixo. Aaaahh.... Refrescante.

Limpei todo o produto com a mão; o alívio veio depressa.

Marcinho se desfez do baseado que fumava, tirou um vidro de shampoo matizante de uma sacola que trouxe de seu salão - que fica no primeiro andar - e o conteúdo roxo deixou meu cabelo branquinho quando ele passou e lavou. Achei o bicho ao ver no espelhinho que ele botou na minha frente.

Sequei as orelhas na toalha branca caída por cima dos meus ombros, virei mais uns dois goles de Redbull e curti o resto do dia tega na manteiga. Tudo mec e na paz de Deus.

Yara ligou algumas vezes por ter tido a mensagem ignorada, e na última, pra ver se ela parava, atendi. Prometendo dar uma passada na casa dela mais tarde, desliguei antes de mandar ela tomar no cu. Acho um inferno mina me ligando ou mandando mensagem diretão, papo reto. Se eu tive alguma vontade de estar com ela hoje — o que não tinha nem um pouco — ela eliminou essa vontade com tanta sarneação.

Pra compensar a chateação, marquei com a gatinha do contatinho, Ayla, de mandar buscar em casa, lá pelas uma. Pelo desenrolado da conversa, ela não iria se eu não fosse buscar, mas passei a visão de que não ia conseguir, que acabava ficando sempre enrolado e tal. Tá ligado como é... Não ia sair de onde eu estivesse pra buscar ninguém, nem se ela fosse a Sabrina Sato.

O papo dos cria agora, pelo jeito, era sobre a época de escola em que alguns precisavam trabalhar, quando deveriam estar em sala de aula. Muitos começaram a ir no seu corre muito cedo, trampando em variadas profissões esculachadas pra ganhar miséria. Jotinha contou que roubava desde menorzin. A primeira vez ele lembra até hoje, foi com treze anos.

Parei para pensar em como também entrei novo pro crime. Eu e os amigos.

Fui o primeiro, depois, Bazuca, pra ajudar a coroa, que bancava sozinha a casa. Ninja foi o último dos três. Nem botava fé que ele acabaria escolhendo essa vida. A família dele não passava necessidades. Trabalhavam bastante e viviam com dignidade. Mas o motivo dele, aquele motivo que te empurra mesmo contra tua vontade, foi o tratamento de câncer da irmã. Caro pra porra, os velhos não podiam pagar tanto. Sus? Ela teria falecido muito antes se não fosse pelo particular. O menor fez o que deu pra fazer, naquela idade e época. Sofreu a mesma perda que eu. Terrível de lembrar...

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