lenços e espirros

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"Você comeu alguma coisa hoje?"

Natália encara Carol como se ela tivesse uma segunda cabeça. A professora está com os olhos fundos, o rosto mais pálido que o normal e se apoia na bancada, depois de deixar a bolsa no sofá da sala, enquanto é interrogada pelos olhos assassinos da noiva, que está há cerca de três dias pedindo que ela pelo amor de deus se cuide um pouco.

"Tomei um chá faz umas horinhas."

"Você tá querendo me deixar viúva? Por que você não ligou?" Coloca a mão na testa de Carol. "Você tá pelando, amor."

"Acho que é esse clima frio. Não tô acostumada com um inverno assim, sabe."

Natália sabia. Sabia que todo mundo ficou com medo por ela, que ia para outro país unicamente por amor, que era doida (isso ninguém disse, mas a confirmação solicitada por Pedro quarenta vez antes dela embarcar tinha dado uma dica), mas ela estava ótima aqui. Embora tenha sido quem veio acompanhar a esposa, sem muito o que fazer além de segui-la, era Carol quem estava sofrendo mais com essa coisa de morar fora do Brasil.

Enquanto a fotógrafa se divertia com o clima frio, as paisagens gélidas, os trabalhos freelance, Carol sentia profundamente a saudade do sol, das pessoas, do apartamento antigo, do idioma. Às vezes ela ligava para Natália no meio do dia apenas para ouvir alguém falando português. É enlouquecedor, sabe, amor, aqui ninguém parece entender nenhuma das minhas piadas.

E agora, a cereja do bolo, uma gripe que pegou do colega de pesquisa, causando uma reação tão intensa que há dois dias ela mal se aguentava em pé.

Natália havia lhe avisado tantas vezes que o clima aqui não era para brincadeiras. Ela, que com todo seu jeito maluco e inconstante, parecia agora a rocha que segurava Carol no lugar. Lavando suas roupas, cozinhando, se certificando que ela tinha sempre os casacos mais quentes para usar, colocando lanches extras em bolsas térmicas e infinitas coisas que ninguém nunca imaginaria.

"Sabe, eu não mando comida pra você todo dia pra brincar de casinha, viu? É pra você comer."

Natália sabe, lá no fundo, que está sendo um pouco irracional com isso tudo. Carol não tem culpa de ser atingida por um vírus sazonal. Alimentação ou não, isso poderia ter acontecido de qualquer forma. Mas ela tem tido certa dificuldade em lidar com todo o sofrimento da professora, quando estar em um lugar lindo com a mulher que amava era perfeito e ela não podia estar mais satisfeita.

"Eu sei, amor."

Mas enxergá-la tão amuada, os ombros caídos, fez reacender a necessidade de confortá-la. Natália sabe o quanto os dias se alongam diante de Carol e o quanto a falta, essa companhia incessante, lhe deixa instável emocionalmente.

Claro que havia outras belezas nas mudanças. Se perguntassem para a professora, ela diria que a principal era a solidez da relação que estava construindo com a melhor amiga. Os dias cansativos, que repousavam sempre nos braços abertos, nas palavras certeiras, nas piadas que Natália espalhava pela casa como purpurina. Ela nunca permitia que a tristeza fosse nada mais do que mera visita passageira. E, por isso, Carol nunca teria como agradecer.

O acesso de tosse trouxe Natália para o lado da esposa, que enrolou a mão em seu braço, a fim de se apoiar contra a instabilidade e a febre que sentia arder em si.

"Shhh, vem cá..vamos preparar um banho para você."

Carol não ofereceu qualquer resistência enquanto era levada pelo corredor, o piso de madeira escorregadio contra as meias brancas. Lá dentro, Natália encheu a banheira enquanto a outra permanecia sentada na privada fechada, enrolada nos próprios braços, sentindo incessantes calafrios atravessando seu corpo.

"Levanta, meu amor."

Primeiro, foram os óculos. Agora, usava uma armação mais fina, preta, mas ainda muito típica da pessoa que era. Depois, foi a vez da blusa branca de botões escuros, que Natália havia lhe dado de presente há um mês atrás. Por fim, as calças de brim chumbo. A calcinha e o sutiã simples escorreram pelas pernas antes que ela se apoiasse novamente na esposa, cansada demais para se mover.

"Eu sei, eu sei. Vamos abaixar essa febre e colocar você para dormir, ok?"

"Uhum."

Depois de colocá-la na banheira, Natália fez menção de sair do banheiro para esquentar a sopa que havia feito para a esposa, quando sentiu os dedos de Carol apertando seu braço.

"Obrigada."

"Agora sua febre tá mesmo te afetando" Ironiza, beijando sua testa com carinho. "Você não precisa me agradecer né, amor. Agora toma seu banho que a senhora ainda precisa se alimentar."

Alimentação havia se tornado uma grata surpresa para Natália. Ela, que nunca precisou cortar uma cebola na vida, se via agora assistindo vídeos sobre culinária, massas e assados, porque descobriu, recentemente, que isso a fazia se sentir útil. Logo, quando não estava trabalhando em um ensaio, nem em um projeto paralelo sobre as paisagens do Canadá, Natália cozinhava. O que havia começado como um desastre, cheio de panelas queimadas e erros descomunais, se transformou num ponto forte para saúde mental da fotógrafa. E para a barriga da esposa, claro.

Carol, que, ao contrário dela, nunca viu a menor graça na cozinha, se beneficia muito com as invenções de Natália, sempre atenta aos sabores que lhe agradavam ou não. O único problema são esses momentos em que ela não pode, por exemplo, aproveitar esse novo lado da esposa porque está com seu paladar prejudicado pela gripe.
Enquanto ela come, os pés enrolados em meias fofas em cima das pernas de Natália, escuta a história sobre os planos da vinda de Pedro e Taís para o Natal.

"Eu vou comprar um casaco adequado pro nosso sobrinho, porque, eu juro por Deus, se o Pedro for encarregado da segurança térmica do filho, o Pedrinho congela com 10 minutos lá fora."

"Amor, acho que a Taís sabe que aqui é bem frio."

"Sim, mas ela insiste em acreditar na capacidade do meu irmão." Natália afirma com os lábios franzidos.

Quando se mudaram, uma das coisas que mais fizeram falta para Natália foi justamente passar algum tempo perto do irmão. Por isso, a professora sabe o quanto esse natal é esperado. Não só por ela, já que Carol sente muita falta de todos, e está exultante para conhecer o sobrinho.

Assim que a sopa termina e o tempo esfria ainda mais, mesmo com o aquecedor ligado, Natália guarda as coisas no lugar e leva Carol, já quase adormecida, para o quarto. O antitérmico já fez efeito, e, por isso, ela se aconchega facilmente embaixo das cobertas, as mãos buscando Natália logo que encosta a cabeça no travesseiro.

É curioso reparar como o toque veio facilmente para duas pessoas que eram tão avessas à ele. A timidez de Carol e a antipatia de Natália pareciam, aqui, insignificantes. Houve um momento, muito no início, em que a fotógrafa chegou a temer que isso poderia azedar seu relacionamento. Uma baita bobagem, já que nunca existiu, ela pensa, um momento em que as duas não tivessem um relacionamento extremamente tátil. Casadas, isso só havia se intensificado.

Natália adora ser abraçada por Carol. Sentir o corpo enrolado contra si, a respiração no pescoço, o perfume reconfortante a envolvendo. Porém, hoje, ela sente a necessidade de embrulhar Carol em seus braços, acariciando seus cabelos enquanto ela suspira, relaxando finalmente.

"Amor, desculpa por estar sendo tão difícil. Eu juro que vou me acostumar, tá?"

"Ei, isso não tem nada a ver com você ficar doente. Para de ser boba. Logo, logo, você tá Canadense"

Elas riem baixinho.

"Eu sou muito feliz com você aqui, você sabe, né?" Carol afirma, enfiando o nariz no pescoço de Natália.

"Eu sei. Mas às vezes é bom ouvir isso."

"Vou te dizer, então, todos os dias daqui pra frente."

"Não exagera também, minha cafoninha."

"Shhh, é que eu te amo." Carol diz baixinho, já praticamente dormindo.

"Eu também te amo." Coloca os braços ao redor dela, enquanto escuta sua respiração ficar mais pesada. "Dorme bem, meu amor."

E adormece em seguida, embalada pelo conforto de estar aconchegada na sua casa, com a sua mulher.

duetos | narolOnde histórias criam vida. Descubra agora