Faliza deparou-se com um ambiente rural campestre. Casas frágeis com telhados de colmo, grandes terrenos baldios de flores silvestres, vinhas abundantes e pomares de pereiras e macieiras compunham a paisagem visualizada pelos olhos da cientista. Aqui e ali, via-se um freguês ou outro com uma indumentária típica de uma recriação histórica. Estranho! Não era entre campesinos, que tinham cara de nem o próprio nome saberem escrever, que ia encontrar a fórmula miraculosa para salvar o Multiverso. Bem, pelo menos estava viva. Um pouco atarantada, com uma forte cefaleia, mas inteira. Menos mal.
A cosmóloga ouviu um murmúrio atrás de si. Um feixe de luz concentrava toda a energia do portal que transportara a cientista até àquela aldeola. Com um estrondo luminoso que se propagou por tudo quanto era sítio, desvaneceu-se. Quisesse Faliza voltar para trás e já não ia a tempo. O pórtico fechara-se com uma gargalhada luzidia.
A mulher olhou para a mão: pelo menos ainda tinha o Sperantia consigo. Podia congratular-se de não ter de ficar presa naquele mundo antiquado para sempre. A esperança ainda vivia, e só morreria quando o próprio Cosmos findasse para dar lugar ao Caos que há incontáveis milénios aguardava a sua sucessão no reinado secreto dos mistérios da existência.
Faliza respirou fundo. Tentou acalmar a belíssima enxaqueca que a afligia. Encheu novamente os pulmões de ar e cerrou as pálpebras. Lá porque a morte não a levara no primeiro portal, não queria dizer que não decidisse transportar a cientista no seu colo fatal no segundo portal. Mas a vida de uma minúscula humana era completamente insignificante quando comparada com a grandeza da possibilidade de salvação do Multiverso.
- Ó grandiosa Deusa! A que devo a tua visita nesta linda alvorada que desperta os campos?
A cosmóloga abriu os olhos repentinamente, como quem é abanado com violência durante o mais encantador dos sonhos. Mal trajado, todo roto e com a cara suja de pó, um rapaz ajoelhava-se respeitosamente diante da cientista, como se tivesse à sua frente a maior heroína de todos os tempos. Por acaso, se os ambiciosos planos da mulher se concretizassem, até para lá caminhava. Porém, o Universo ainda seguia o seu discurso fatídico.
- Em nome do meu povo, peço desculpa por alguma ofensa que tenha sido dirigida aos Deuses. - Prosseguiu o adolescente, perante o silêncio da mulher. - Misericórdia te peço, pois somos desprezíveis mortais...
- Não sou uma Deusa. - Cortou Faliza, controlando-se para não se escancarar a rir pela majestosidade da receção que o jovem campónio lhe fazia.
- Impossível! Quem mais controla a luz dessa forma a não ser as divindades? E este instrumento divino... - Disse o rapaz, olhando curioso para o Sperantia. - É exatamente igual ao do Deus que visitou a minha mãe.
- Já viste este objeto antes? - Interrogou Faliza, já a construir mentalmente uma lista de gente propensa a roubar-lhe o projeto.
- O meu pai trabalha nos campos, mas a minha mãe era uma bruxa. Diz-se que os bruxos são os únicos que, volta e meia, avistam os Deuses que coordenam o mundo. Certa vez, era eu pequenino, a minha mãe viu uma luz fortíssima enquanto vagueava pelos campos sagrados para recolher ervas mágicas que curam qualquer moléstia. Aproximou-se e viu um ser majestoso. Forma semelhante à dos mortais, embora com grandes orelhas pontiagudas, olhos pequenos semicerrados com vidros à frente que se seguravam atrás das orelhas com hastes douradas, quatro dedos em cada mão e muito mais alto do que qualquer homem terreno. Chamava-se Yritrius. Foi ele quem trouxe a Profecia que nos amaldiçoa.
- Profecia? - Questionou a cientista, subitamente interessada.
- Ele determinou por enigmas que o mundo findar-se-ia. A minha mãe decifrou-os e, segundo ela, chegará a um ponto em que os Deuses, já cansados de sustentar esta criação, transformarão tudo em pedaços tão minúsculos que será impossível reconstruir semelhantemente. Um novo mundo será criado quando os Deuses já tiverem descansado o suficiente e pensado numa nova existência completamente diferente. Yritrius queria impedir os outros Deuses de dizimarem o atual plano dos mortais, mas contra o Destino, nem os Deuses se podem opor.
- Esse tal de Yritrius não terá falado em Multiverso, átomos, quarks, espaço-tempo...?
- É claro que o Deus Mensageiro do Destino utilizou esses termos místicos incompreensíveis para os meros mortais ignorantes.
Bem, pelos vistos, existia um outro viajante interdimensional determinado em salvar o Multiverso e que, indo ali parar, foi tomado como uma divindade. A história que o miúdo narrava não passava da narrativa teórica científica que ocupava a mente de Faliza desde o principiar dos seus tempos de faculdade camuflada com uma boa dose de imaginação e mitologia.
- Já me esquecia! Bebe isto. - Instruiu o adolescente, tirando uma garrafa com um líquido esverdeado da velha mala a tiracolo. - É o Chá Divino. Yritrius pediu-o quando visitou a minha mãe. Ajuda na adaptação dos Deuses ao plano mortal. Todos os poucos bruxos que restam têm sempre uma porção consigo.
Fosse lá o que fosse aquela mistela com ar de xarope medicinal caseiro, a mulher sorveu todo o líquido. Estava cheia de sede e com uma dor de cabeça medonha. O que não mata, engorda. E não lhe parecia que o rapaz tivesse intenções de matar alguém que considerava uma Deusa.
- Posso falar com a tua mãe? - Perguntou Faliza, cuja enxaqueca melhorava a olhos vistos desde que tomara o xarope.
- Ela foi morta por revelar a Profecia à aldeia. - Revelou o jovem bruxo, com melancolia no olhar. - Mas ela contou-me que Yritrius, com o objeto, abriu um túnel de luz colorida em direção à morada dos Deuses, e nunca mais a visitou.
- Obrigada! E tem cuidado! Olha que eu quero te visitar daqui a uns tempos.
Faliza pressionou o botão do Sperantia. Um portal resplandecente surgiu, para estupefacção do miúdo que talvez numa coisa tivesse razão: e se o destino do Multiverso fosse o colapso? E se o curso do Destino fosse inalterável?
Ainda assim, a cosmóloga atravessou o portal. Havia de encontrar esse Yritrius, porque a esperança é a última a morrer.
(1000 palavras)
Monte, 2024
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A esperança é a última a morrer
Historia Corta🥈 2º lugar na Copa dos Contos 2024 (Copa dos Portais) do @ContosLP Diz-se que tudo o que tem um início, tem um fim. E tudo inclui o Multiverso, que se aproxima do seu instante derradeiro. Faliza tem consciência de que o destino final aproxima-se. M...