Faliza contemplava demoradamente o objeto circular metálico que segurava na mão. O dispositivo brilhava com minúsculos pontos azuis, verdes e magenta. Era tentador. Uma coisa tão pequena capaz de alterar o destino do Universo. Espaço e tempo curvavam-se respeitosamente perante aquele equipamento e obedeciam infalivelmente às suas ordens, enquanto o Multiverso funcionasse de acordo com os inúmeros e complexos cálculos matemáticos feitos pela cientista. O pior era se o Cosmos decidisse ganhar vontade própria e violar os princípios básicos da Física e da Astronomia.
A mulher, ainda na flor da idade, dispensara desde a sua juventude boa parte do seu tempo e dos seus neurónios para aquele projeto revolucionário. Se revelasse as reais intenções dos aparentemente insignificantes estudos excessivamente teóricos que empreendera desde os seus tempos de faculdade, de certeza absoluta que seria estrangulada pelos princípios da prudência e da cautela. Mas o futuro do Universo estava em jogo. Do que valia todo o cuidado do mundo se o mal estava feito?
Teoricamente, quando a matéria descomprimiu nos inícios dos tempos e deu origem àquilo que os antecessores e contemporâneos de Faliza conheciam como partículas fundamentais, que correspondiam aos eletrões, quarks e mais uma mão cheia de corpúsculos de compreensão restrita às mentes interessadas mais brilhantes, formou-se um conjunto de Universos semelhantes entre si. E, teoricamente, desde o momento da sua criação, o Multiverso estava em expansão até as partículas não conseguirem manter mais a coesão, o que ditava a destruição desse conjunto de Universos, entrando novamente a matéria num estado de caos até que um novo Multiverso surgisse. Assim eram os assustadores ciclos da realidade cósmica.
Havia quem afirmasse, à partida, que este era um assunto cativante. Alminhas ignorantes! Era impossível na vastidão da existência existir tema mais temeroso. O Multiverso entrava a passos largos na reta final do seu longo viver. A aurora tornar-se-ia tão escura, tão sombria, que toda a esperança e todo o sentido de respirar, de sentir, de sobreviver, de morrer, desvanecer-se-iam. Salvação impensável, fim inevitável.
Porém, nos sonhos da otimista Faliza, uma centelha utópica iluminava o desalento do mundo. Cientista genial, cosmóloga sábia, a mulher via numa mera hipótese a possibilidade de dar aos seus futuros filhos, netos, bisnetos e trinetos um amanhã certo, sem a insegurança de verem os seus corpos a desintegrar gradualmente até ao instante em que as estrelas se apagariam dos céus noturnos e os planetas parariam de girar, regressando os sistemas planetários ao estádio primordial de poeira cósmica.
Desde que tomara consciência do fim inexorável do Multiverso, a rotina de Faliza resumia-se a cálculos, raciocínios, suposições, teorias e, acima de tudo, muito estudo e muito tempo passado ora no escritório, ora no laboratório. Objetivo final? Construir o Sperantia, dispositivo que, teoricamente, permitia adulterar por completo a curvatura do espaço-tempo através da utilização de gravitões implantados no seu núcleo. Funcionaria? Na melhor das possibilidades, a mulher viajaria através do tempo e alcançaria algum dos Universos paralelos ao seu. Depois, logo se veria. Certamente que, em tanto Universo, nalgum mundo, nalgum tempo, existiria um sabe-tudo com a resposta para impedir o progresso do afastamento da matéria. Na pior das hipóteses, Faliza morreria juntamente com o Multiverso. Mas do que valia a sua insignificante vida comparada com o destino do Multiverso e de todos aqueles que nele habitavam?
A mulher soltou um suspiro e sacudiu os longos cabelos ondulados com madeixas lilás. Inspirou fundo. Expirou demoradamente. Fechou os olhos, cerrou as pálpebras. Não é todos os dias que se desafia o Destino impiedoso, inviolável, inalterável, imutável, impermutável, inexorável. Pensou na beleza do Sol que cumprimentava a sua janela de manhã, na Lua que iluminava a escuridão, nas estrelas que abrilhantavam a noite. Pensou nos tantos planetas que pelo Cosmos se espalhavam, nas criaturas inocentes que neles habitavam. Premiu o botão do Sperantia. Um portal resplandecente abriu-se diante de si. O pórtico imaterial, constituído por radiação misteriosa, convidava a cientista a embrenhar-se nas suas entranhas místicas. Reunindo a pouca coragem que lhe restava, a mulher atravessou-o. Podia morrer, a Humanidade podia morrer, o mundo podia morrer, a Terra podia morrer, os astros podiam morrer, a galáxia podia morrer, o Universo podia morrer, o Multiverso podia morrer. Mas a esperança... a esperança é a última a morrer. Nada mais importava.
(700 palavras)
Monte, 2024
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A esperança é a última a morrer
Cerita Pendek🥈 2º lugar na Copa dos Contos 2024 (Copa dos Portais) do @ContosLP Diz-se que tudo o que tem um início, tem um fim. E tudo inclui o Multiverso, que se aproxima do seu instante derradeiro. Faliza tem consciência de que o destino final aproxima-se. M...