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Depois do mundial nos Estados Unidos da América em 1994, depois do meu último encontro com Diego Maradona em junho desse ano no Babson College, em Boston, compreendi que ele já não podia reentrar na minha vida. Deixei de ter espaço para a sua presença física, no meu pensamento, ou num desejo maluco de reaproximação. Já o tinha afastado em 1992, e apesar de nos termos visto dois anos depois numa visita surpresa que me encheu de sonho, o melhor seria mantê-lo afastado de mim. Então, recusei-me a seguir as notícias que o mencionavam, quer se relacionassem com o futebol, quer fossem fora do âmbito desportivo, que eram a maioria, agora que ele se classificava como um ex-futebolista. Escutava o seu nome na televisão ou no rádio, lia-o nalguma caixa inconspícua na página de um jornal ou de uma revista, mas não lhe prestava especial atenção. Forçava-me a ignorá-lo ou limitava-me a passar-lhe os olhos por cima.

Infelizmente, Diego estava mais presente do que nunca na imprensa e o meu sossego nunca era completo. Lá estava Maradona a surgir numa frase bombástica, numa fotografia capturada à socapa, numa reportagem televisiva, numa compilação sobre as edições mais recentes do campeonato do mundo. Lá estava Maradona mais jovem, mais velho, em forma e gordo, espevitado e exausto, lindo e feio, meu e de ninguém.

A fuga seria sempre possível, mas, para isso, teria de fazer uma qualquer mudança radical em mim, uma cisão muito parecida àquela que me orientou durante a segunda metade da minha adolescência, e não queria fazê-la. Na verdade, amedrontava-me criar uma nova Cristina naquela etapa da minha vida. Temia perder o que tinha ganhado, de me transformar de tal modo que afastasse o Marco, que era a pessoa mais importante da minha vida naquela altura. E se o meu namorado me deixasse de reconhecer se adotasse um novo revestimento, um novo interior, para nesse processo poder apagar a memória de Diego para sempre? O sacrifício valeria a pena? Decidi que não, após refletir sobre o que ganhava e o que perdia. Manteria Diego comigo, mas num estado adormecido, muito no fundo dos meus pensamentos e das minhas apoquentações. Quando fosse interessante recuperar a parte boa, iria buscá-lo desde que não me custasse nada, nem que me fizesse sofrer. Na maioria das vezes ficaria em estado de suspensão, paralisado na melhor recordação que teria dele.

Fiquei magoada e melancólica durante alguns dias, que me apanhavam à falsa fé, no verão de 1994. Se o tempo não prestava para ir à praia, se um encontro de amigos fosse cancelado, se o dia no escritório me corresse mal, se discutisse com o Marco por uma qualquer ninharia, se a minha mãe me enervasse com as suas picuinhices de sempre, deprimia-me e refugiava-me na lembrança daquele último dia em que vira Diego, em Boston. Sabia que um reencontro seria cada vez mais difícil agora que ele se refugiava na Argentina, porque o futebol já não servia para nos ligar, e a tristeza cavava inesperadas funduras na minha alma estraçalhada. Mas assim que passava um excelente dia a nadar no mar, a dar gargalhadas enquanto comia um gelado na companhia da Marta, a completar mais um projeto antes do prazo, a fazer amor com o meu namorado durante o pôr-do-sol, a ter uma conversa civilizada numa reunião de família passava-me a depressão e esquecia-me de Diego.

O tempo foi implacável, no verão de 1994 e em todos os verões que se seguiram a esse, e cilindrou a réstia de sentimento que ainda nutria pelo meu amigo argentino de outras eras.

Compreendi que me libertava, finalmente, da minha dependência que confundira erradamente com amor. Tentava, de quando em vez, manter a minha mágoa e a minha melancolia para não perder a ligação com esse passado que me era muito querido. Considerava que se me entristecesse a espaços regulares continuava a manter uma certa coerência e podia justificar que não era ingrata, nem leviana no tratamento do meu passado. Diego, e Jean-Marie, tinham-me dado tanto! Não só eles, mas todos os outros argentinos e todos os outros belgas que conhecera através deles.

Como uma amante confessa de História desde tenra idade, o apagamento da memória e a destruição de património, quer fosse tangível ou intangível, horrorizava-me. Procurava preservar tudo o que definisse o percurso da minha vida, que contasse a minha história pessoal. Fazia coleções de objetos com um significado especial que simbolizavam uma data, continuava a escrever apontamentos em cadernos que testemunhavam o meu dia-a-dia, sistematizava os meus livros por ordem de importância, por autor e por título, conservando todos aqueles que me ofereceram desde a primeira infância. Os livros eram o meu bem mais precioso, que guardavam as minhas emoções nas suas páginas que folheara ora alegre, ora sisuda, ora distraída, ora apaixonada.

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