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Trinta anos antes eu fora proibida de ir a Nápoles comemorar o primeiro scudetto do clube da cidade. Em 2017 continuava longe da cidade, longe desse evento que não me pertencia inteiramente, e a distância alheava-me da comemoração que se preparava para assinalar a efeméride.

Sendo portuguesa, nunca fora belga ou argentina, italiana ou napolitana. Havia esse defeito em mim que, nessa altura, disfarçava com uma cosmética bastante tosca. Inventava que sim, que tinha a correr-me nas veias o sangue certo que condizia com a paixão arrebatada que me caracterizava. Fui belga, fui ainda mais argentina, fui especialmente napolitana. Acreditava com ferocidade que tinha outra nacionalidade diferente daquela indicada na minha cédula de nascimento, que por via da minha dedicação, por simples osmose, eu podia perfeitamente adotar os modos argentinos, os modos napolitanos. Fazia parte da invenção com que revestira o lado colorido e exposto ao sol do meu mundo adolescente.

Tudo tinha terminado com o meu crescimento, com o meu amadurecimento, com a entrada na vida adulta. Deixei de trazer agregadas a mim outras nacionalidades e passei a ser orgulhosamente portuguesa. De resto, ao contrário do que tinha acontecido antes, até o futebol contribuía para essa vaidade, para essa afirmação.

Conferi de forma breve as celebrações dos trinta anos do primeiro título do Napoli. Uma notícia de rodapé no jornal, uma referência pequena nas publicações online, e foi tudo. Mas aquelas poucas palavras, aquela beliscadela que me captou a atenção durante escassos segundos, deixaram uma mancha. O número era redondo e, a meu ver, esmagadoramente impossível. O quê? Tinham-se passado trinta anos?!

E se desse meia-volta, como se contemplasse o que tinha ficado atrás de mim, o ano passado mais concretamente, percebia que também já se tinham passado trinta anos do mundial do México, não tivesse eu outros afazeres, não estivesse eu embrenhada noutras matérias que demandavam as minhas energias e a minha atenção.

Trinta anos!

Abanei a cabeça. Eu estava assim tão velha? E Diego também tinha envelhecido, ficado doente, recuperado, disfarçado as mazelas, continuava, entretinha-se, ia aparecendo nas notícias, provocava-me a curiosidade, mesmo depois de todos esses anos. Estávamos os dois diferentes, isso era certo. Velhos e irreconhecíveis.

Na feira do livro do verão de 2017, que gostava de visitar para comprar livros mais em conta, procurava também, disfarçadamente, pelo meu livro que nunca estava exposto em nenhuma banca, descobri uma publicação especial.

Era uma noite muito quente de agosto, estavam mais de trinta graus, toda a gente se queixava da temperatura anormal. A minha pressão sanguínea baixou de repente, a minha visão afunilou, empalideci. O Marco agarrou-se a mim para evitar que eu caísse e levou-me para um banco próximo, ao mesmo tempo que me lavava a cara com água fria que me obrigou a beber de seguida. Os miúdos ficaram assustados e agarravam-se a mim a chamar "mamã, mamã" sem parar, sentia-lhes as mãos a repuxarem-me a bainha dos calções. Ao fim de alguns minutos de aflição, o Marco perguntou-me se me sentia melhor, se queria ir para casa.

– Para casa, não... espera, vamos já... primeiro... primeiro quero comprar um livro.

Ultimamente davam-me aqueles achaques. Se fazia muito calor, se usava roupa mais apertada, se comia mal ao almoço, se me deitava tarde, se me esforçava fisicamente, podia ficar à beira do desmaio, desorientada, a suar em bica ou gelada como um cadáver. Fiz análises, fui ao médico. Receitou-me vitaminas que não tomei, era só cansaço. Descansava, mas nunca parecia o suficiente. Esgotava-me mais rapidamente do que repunha as energias. Era a velhice.

Tinha acabado de acontecer na feira do livro. As pessoas abeiravam-se de nós preocupadas, para saberem se precisávamos de ajuda. Eu olhava irritada para o Marco e ele dispersava toda a gente com a indicação de que estava tudo bem.

Desertos VaziosOnde histórias criam vida. Descubra agora