O Marco não gostava de futebol. Melhor dizendo, o Marco via futebol, mas sem o ardor desenfreado de um adepto ferrenho que seguia religiosamente a sua equipa do coração ou a seleção nacional, que acompanhava resultados e consumia jornais desportivos. O Marco usava o futebol como motivo de reunião entre amigos, tópico de conversa, porção do seu conhecimento genérico do funcionamento do mundo. O futebol fazia parte indelével da sociedade, era em muitos países, incluindo Portugal, o desporto principal, aquele que congregava as maiores multidões e que obtinha maior tempo de antena nos meios de comunicação social. Então, era imperativo que se soubesse alguma coisa sobre futebol para não se ser ignorante. O Marco detestava ser apanhado de surpresa.
Eu ajudava-o na aquisição dos conhecimentos básicos sobre o desporto. Tinha de me refrear, não deixar que o entusiasmo levasse a melhor e desatasse a comentar jogos, equipas e futebolistas com a mesma propriedade dos comentadores desportivos na televisão, para evitar perguntas desnecessárias e esclarecimentos ainda mais desnecessários. Ensinava-lhe o que eu sabia, orientando-o para fazer uma boa figura sempre que lhe pediam opinião sobre alguma questão futebolística. Ele, depois, agradecia-me e elogiava-me por ser tão inteligente e conhecedora de tantas coisas, incluindo futebol.
Ter um namorado e, mais tarde, um marido que não tinha no futebol o grande centro da sua vida, como a maioria dos homens, ajudou-me também. Vimos os jogos do mundial da América juntos, no estádio, mas fui comedida e ele tratou a experiência como um naturalista a visitar uma paisagem inexplorada. Observou cuidadosamente o ambiente, recolheu amostras para estudá-las mais tarde. De vez em quando mencionava esses dias, perguntava-me se me lembrava de algum pormenor específico, como aquele adepto mais extravagante, ou o festejo do golo brasileiro no relvado, ou o calor que fazia nessa tarde, mas não se punha a esmiuçar as minhas respostas. Isso era muito reconfortante para mim. Detestava ter no Marco um permanente recordatório do futebol que eu, com algum desespero no início, fizera por esquecer, porque com o futebol vinham outras coisas que iriam alterar a imagem e a ideia que ele tinha da pessoa por quem se apaixonara e com quem casara.
Perguntei-lhe uma vez, ainda durante o nosso namoro, por quem torcia. Ao responder que simpatizava com o Benfica senti alívio. Mesmo sem dedicar especial atenção ao campeonato nacional, era melhor que ele gostasse do meu clube do que dos rivais diretos, o Sporting ou o Porto. Quando havia jogos importantes em que éramos convidados para vermos numa reunião de amigos, uns mais fanáticos do que outros, uns mais empenhados do que outros, eu e o Marco podíamos, numa situação limite, vestir-nos de vermelho da cabeça aos pés, usar o cachecol correspondente, sem que existissem discussões ou cedências prévias.
Esse futebol era, de certo modo, estranho. Achei que já não me devia nada, nem me pus a cobrar-lhe o que quer que fosse. Adotei uma postura mais neutra, contemplei-o com outros olhos, tranquei o meu coração à sua influência. Determinei que não me iria interessar em particular por mais nenhum jogador e decorar-lhe os jogos, seguir-lhe a carreira, apontar os troféus conquistados e sonhar com as suas noites de glória. O futebol passou a ser o que sempre fora, o que continuava a ser, o que devia ter sido: uma equipa de onze jogadores que trabalhavam para um objetivo comum, sem destacar ninguém. Havia os futebolistas que sobressaíam numa determinada partida, que marcavam o golo decisivo, que faziam a jogada ganhadora, que eram expulsos por terem perdido a cabeça, que sofriam a falta feia, que tinham deixado a derrota acontecer, havia ainda os craques, os jovens talentos cujos atributos eram elogiados pela imprensa, os mais velhos carregados de manhas que continuavam a fazer a diferença, mas depois de Diego Maradona achava difícil que aparecesse um jogador que me apelasse à fantasia e me fizesse sonhar. Era impossível alguém suplantar Diego!
Eu tentava, porém. Contra a minha vontade e contra a minha sanidade, como um reflexo que me fora incutido por anos de prática, um mecanismo do subconsciente, eu procurava por esse futebolista que haveria de me roubar a alma. Só a alma, atenção. Roubar-me os sorrisos e os sonhos seria mais difícil, porque, ao aperceber-me da armadilha que estava a construir, retraía-me e cortava cerce o feitiço que ameaçava encantar-me.
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Desertos Vazios
Fiction HistoriqueEsta é uma longa e penosa travessia no deserto que se chama vida, quando decidimos eliminar o que consideramos supérfluo. Para depois descobrirmos que precisamos do excesso, da cintilação, da loucura, da paixão e da intensidade para afirmarmos que v...