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No início de 2010, eu e o Marco atirámo-nos a uma empreitada grande de reconfiguração do apartamento, pequenas obras que o iriam beneficiar. Normalmente, costumávamos fazer arrumações de tralha, como chamávamos, duas vezes por ano. A seguir às férias do verão, logo a começar setembro, para termos tudo pronto para o início da escola e o regresso ao infantário, e a seguir ao Natal, quando começava o novo ano e apetecia dar um novo ar à casa, mais aconchegante, mais moderno, para condizer com o início do calendário.

Para aquele ano tínhamos determinado que precisávamos de uma remodelação mais profunda do que uma simples decoração que mudava um móvel de sítio, substituía um cortinado e um tapete, que metia coisas que já não iríamos usar dentro de caixas que atafulhávamos na arrecadação. Tínhamos três filhos, o André ainda iria completar um ano, os quartos estavam atravancados, a sala era uma confusão de brinquedos e de estantes com livros, a cozinha estava mal aproveitada, era urgente encontrarmos mais espaço de arrumação e que as divisões destinadas a tal não parecessem um depósito de objetos indesejados. Contratámos um arquiteto amigo do Marco, eu consegui uma decoradora que me fez um preço simpático, e no mês de janeiro a casa transformou-se num estaleiro controlado.

A cozinha ficou para último. Só na primavera avançaríamos com a intervenção aí, pois iríamos mudar armários e eletrodomésticos. Resolvemos tirar férias na Páscoa, ir passear para fora e deixar os tipos da empresa de construção à vontade que nos garantiram que conseguiam fazer o trabalho, que iria ser supervisionado pelo pai do Marco, numa semana.

Começámos pelos quartos. As meninas, especialmente a Eva que era mais velha e percebia melhor o que acontecia, adoraram a nova divisão, que tinha um sítio para estudar e móveis funcionais onde cabiam todos os brinquedos. Na sala criei uma biblioteca nova, com estantes até ao teto, feitas à medida, onde guardei o que não usava tanto em caixas que acondicionei na parte fechada por portas, no topo do móvel. Havia uma nova mesa de trabalho para o computador e a impressora. Substituímos a mobília da sala de jantar por uma mais pequena, num recanto ficou o lugar da televisão com um sofá, um cadeirão e um tapete enorme onde os miúdos podiam brincar sob a nossa vigilância.

A arrecadação foi também toda remodelada. Colocou-se uma estrutura ligeira feita de metal resistente aparafusada à parede, comprámos caixas mais robustas, herméticas e impermeáveis para acondicionarmos as coisas que queríamos guardar, que continuavam a não se enquadrar na casa, mas que não desejávamos descartar para já. Fazíamos a seleção naquele fim-de-semana. Deixámos os nossos filhos na casa da minha mãe, que adorava ficar com os netos, e empenhámo-nos nessa tarefa monstruosa. Separámos sacos do lixo grandes, onde juntávamos o que não queríamos, e íamos fazendo a escolha que, por vezes, fruto do nosso cansaço, era bastante sumária. Isso pode ir, não preciso daquilo, essa coisa é para quê, não precisamos, é óbvio que não precisamos ou teríamos dado por falta, julgava que isto já não existia, e por aí adiante. Também havia um lugar do amplo vestíbulo do apartamento onde empilhávamos o que estava ainda em condições para ser doado.

O Marco abriu uma das minhas caixas, aquelas que trouxera da casa dos meus pais. Pelo canto do olho vi-o a remexer no seu conteúdo com algum espanto. Percebi que não era a caixa do futebol e deixei-o dar asas à sua curiosidade. Disfarçadamente, passei a mão pelo peito para acalmar o coração que desatara a bater muito depressa. Voltei o pescoço e descobri a caixa do futebol escondida entre outras, debaixo de um saco com peluches, um canto exposto como que a desafiar-me, numa piscadela de olho algo ousada. A caixa permanecia fechada e lacrada, conseguia ver a fita-cola à volta da tampa.

Decidi que a resgataria das catacumbas, que a colocaria no olimpo, nos armários novos da sala fechados por portas. Havia espaço. Empurrá-la-ia para o fundo, mantê-la-ia discreta e insuspeita, devolver-lhe-ia a piscadela de olho, agora ficas aqui, mais perto de mim, novamente perto de mim, já se passou tanto tempo que nos podemos reunir, porque Diego também se havia reunido à sua Argentina querida e eu tinha de fazer, mais ou menos, a mesma viagem, desde o fundo escuro até à luz da superfície. Curar as feridas, sorrir, olhar para o passado e voltar a sorrir. Diego e eu continuávamos afastados, mas eu, unilateralmente, como sempre, mantinha-me paralela ao seu percurso. Mesmo que não procurasse saber sobre ele, ele vinha até mim, periodicamente, nas notícias. Era bonito e inquietava-me, mas não deixava de ter a sua beleza, de me recordar do que tivéramos. Ele era famoso, sempre fora famoso, e eu fui apenas uma gota de água minúscula que, um dia, pousara, ao de leve, nele, que depois escorrera, deixara-o, que caíra no chão. Ele seguiu o seu caminho, eu evaporei, condensei, tornei-me noutra gota de água que ficou num sítio mais duradouro, num charco, num enorme lago, onde me juntei a milhentas gotas iguais a mim.

Desertos VaziosOnde histórias criam vida. Descubra agora