CAPÍTULO IX

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(O relato a seguir contraria todas as minhas crenças ateísticas, ou não crenças ateísticas, como preferir. Constatei que existe, sim, vida após a morte).

Despertei atordoado em um quarto onde tudo era absurdamente branco, das paredes ao teto, passando pelo chão. Uma luz irradiava de cima do ambiente, me cegando conforme eu abria os olhos mais um pouco. Todo mundo aqui sabe que luz branca representa a morte e eu estava mortinho da Silva (você quer, Lana del Rey?).

Comecei a despertar enquanto todos os meus pequenos furtos, médios furtos e golpes se passavam em minha cabeça, como num filme francês desses de cinco horas de duração. Os grandes furtos vieram a seguir, seguido por todas as vezes que eu colocara o pé na frente de uma criança para ela tropeçar. Minha consciência transitava por tudo que eu tinha feito de errado em vida. Será que eu seria encaminhado ao inferno pra esperar o Tiago ladrão-de-emprego pra passar a eternidade lá comigo?

Levantei de onde estava e caminhei em direção a um grande corredor branco que, em certo momento do percurso, passou a ter portas de todas as cores: azuis, vermelhas, amarelas, verdes, pretas, marrons... De supetão, inúmeras crianças e cachorros de três patas - iguais ao Enzo - começaram a sair daquelas portas. Como eu não queria ser condenado à eternidade no inferno, comecei a fazer carinho nos cachorros e nas crianças, com o maior sorriso que conseguia fingir no rosto. Certamente aquele era um teste divino.

Sem aviso, todas as crianças e os cachorros começaram a me morder ao mesmo tempo, e eu senti novamente a dor lancinante no tórax. Chutei aqueles desgraçadinhos para longe de mim e disparei adiante no corredor, acelerando o passo. Ao final do corredor, encontre uma grande porta, dessas de uma verdadeira mansão. Adentrei o local.

Atrás dela, via-se uma enorme sala, toda feita de vidro, com uma escadaria de mármore. Subi a escada e abri outra porta gloriosa, que me levou a um banheiro também em mármore, com um vaso que limpa e seca a bunda. Sentei no vaso e, repentinamente, vários cocôs gigantes em formato de emoji de cocô começaram a cair do teto, sobre minha cabeça. A parede frontal transformou-se, então, num grande retrato de Alexandre, meu ex-futuro-marido-médico.

Quando levei o último pedaço de cocô na cabeça, o chão do lugar inteiro abriu-se e eu caí em um novo ambiente. Nele, encontrava-se Tiago, em uma réplica idêntica à da minha mesa na Pinto & Pinto Co. Tiago fitou-me, me vendo todo coberto de bosta e deu uma grande gargalhada.

- Boa noite, Thomas - disse, em tom provocativo e de deboche. - Bem-vindo ao seu pior pesadelo!

- Mas até na morte tu vem me provocar, seu fodido?!

- Calma, segure na minha mão que agora vou te levar para conhecer os vinte e quatro macacos prego que adquiri. Um para cada ano medíocre da sua vida.

Neste momento, uma macacaria de vinte e quatro macacos saiu debaixo da minha antiga mesa e começaram a fazer carinho no Tiago. Me preparei pra ir pra cima daquele filho da puta, quando um dos macacos pulou em minha cara e me deu uma mordida.

Quando me livrei do animal, Tiago e seus macacos prego haviam desaparecido. No lugar deles estava um amplo salão, repleto de carros rosa da Mary Kay, iluminados por uma centena de castiçais, iguais ao que eu havia roubado de Xandinho.

Os castiçais começaram a se deformar, criando bocas e entonando um coro de "pague o carro da Shirley!", enquanto os carros se desmanchavam feito um transformer e se tornavam réplicas idênticas a como eu tinha deixado o veículo da Shirley do papagaio.

Por falar em papagaio, o papagaio da mulher surgiu de repente, voando como a fênix do Dumbledore em Harry Potter, mas berrando todo o catálogo da Mary Kay sem parar. O papagaio assumiu uma forma gigantesca, abriu a boca e me engoliu. Escuridão total. Será que, mesmo depois de morto, eu havia conseguido morrer outra vez?

AS DESVENTURAS DE THOMAS CARVALHOOnde histórias criam vida. Descubra agora