1. DO PÓ DA TERRA

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Não tenho certeza de quando esse sonho começou.

Até onde sei, você nunca consegue se lembrar do início de um sonho. Só percebe que está sonhando quando nota algo inconcebível demais para fazer parte da realidade, mas nem isso é plenamente confiável. Quando seus olhos estão fechados, é melhor não confiar em nada.

Caminho sem caminhar. Não tenho pés, nem pernas, nem mãos, nem braços. Não sou tangível. Sou uma ilusão dentro de outra ilusão. Digo a mim mesmo para ficar calmo; não é a primeira vez que isso acontece, e provavelmente não será a última. A maioria de meus sonhos segue essa dinâmica: no princípio — ou melhor, no momento em que me dou conta de que estou sonhando —, percebo que não passo de um vazio insosso, uma golfada de ar vagando pelo espaço. Embora eu não esteja chocado com isso, o que me deixa em alerta dessa vez é que não estou conseguindo reconhecer o ambiente em que me encontro, pois uma névoa densa e pegajosa me cerca, transformando o que quer que haja à minha volta em um cenário cor de osso.

É impossível saber onde estou. Se eu quiser ver qualquer coisa, terei de ser paciente e esperar até que a névoa decida sair do meu caminho.

Não está silencioso aqui: um murmúrio baixo e farfalhante nada pelo ar como numa dança desesperada. Soa como lábios sibilantes, como alguém entoando uma antiga canção aos sussurros.

Outra vez, isso não poderia acontecer outra vez, sibila o vento melodicamente.

Estou falando?, questiono-me, mas não creio que seja isso. Eu não poderia falar sem uma boca. Se bem que, se for para ser lógico, eu também não poderia andar sem pernas e pés, nem enxergar sem olhos ou pensar sem um cérebro, e estou fazendo tudo isso embora não tenha nenhum órgão que me possibilite realizar essas ações.

O vento sibilante assovia através de mim com a intensidade de uma presa fugindo de seu predador. Não é mais uma única voz, mas um coro de muitas, camuflado de uma aragem inofensiva. No entanto, as palavras são lançadas com uma precisão tão cortante que me fazem sentir um frio imaginário.

Esse é aquele tipo de coisa que só acontece uma vez na vida.

Agora eu reconheço a canção. É "Again", de Doris Day. Foi a música que meus pais dançaram juntos em seu baile de formatura do ensino médio, segundo me contaram.

A música já era antiga mesmo para aquela época, mas meu pai, em seus 17 anos, insistiu que o DJ da festa — um cara rechonchudo de cabelo crespo com espinhas carnais cobrindo todo o rosto — a tocasse. Ele me contou que precisou subornar o DJ com uma nota de dez, que foi a única nota que havia recebido como pagamento por ter aparado a grama do jardim do vizinho, mas no fim deu tudo certo: o DJ tocou Again, que era a música favorita da garota de pele de alabastro e cabelos acobreados que viria a ser minha mãe, e ele cavalheiramente a convidou para a pista de dança.

Os dois dançaram essa e todas as músicas que se seguiram. Os dois tiveram vários encontros após essa noite. Meses depois, os dois abandonaram a pequena cidade provinciana em que cresceram para fazer faculdade em Vancouver. Cinco anos depois, os dois finalmente se casaram, e no segundo ano do matrimônio eu vim ao mundo.

Mas por que essa música está em meu sonho?

Para o meu alívio, a bruma espectral começa a se dispersar, ainda que muito preguiçosamente, demonstrando sua total falta de interesse em revelar o que está ocultando com tanta insistência. Borrões escuros são desmascarados com lentidão enquanto a neblina se afasta. A demora me deixa apreensivo. Não costumo ser impaciente, mas o modo como a bruma tarda em se retirar por inteiro me faz achar que talvez seja melhor não ficar para ver o que tem aqui.

É quase como se ela estivesse tentando me dar tempo para fugir.

O vento começa a sibilar palavras e frases sem sentido por cima da canção, as dezenas de vozes se embaralhando em um cordão invisível, tornando difícil distinguir as palavras, com exceção de algumas que se sobressaem na confusão de murmúrios: Vá embora. Aqui não. Depressa.

NeblinaOnde histórias criam vida. Descubra agora