Começo a gritar um chorrilho de palavras e frases aleatórias na esperança de que as ondas sonoras se choquem contra alguma superfície e retornem para mim, mais ou menos como o que os morcegos fazem.
Não ouço nenhum eco.
Limpo a garganta uma vez e torno a gritar, ignorando a leve irritação na laringe; aguço os ouvidos e giro o corpo em trezentos e sessenta graus com muito cuidado para não perder o equilíbrio. E nada — nenhum sinal de reflexo sonoro.
Talvez eu já esteja morto.
Com as pernas trêmulas, caminho no que em minha cabeça parece ser uma reta perfeita, mas é impossível afirmar estando vendado pela escuridão. Apesar de meu esforço para fazer com que minha atenção permaneça voltada para achar uma saída, quase sem perceber acabo sendo refém de uma enxurrada de pensamentos intrusivos (essas vozes não podiam ser contidas para sempre), o tipo de pensamento que não é bom se ter num momento como o que estou vivendo agora.
Penso nos meus pais. Na vida que lhes foi tirada. Em como o mundo continua girando da mesma maneira depois de eles terem morrido. Não houve nenhuma pausa na decorrência do tempo, nenhuma alteração na vida das outras pessoas, e tudo bem, é assim que as coisas funcionam. Não é como se todos os seres vivos fossem prender a respiração até que eu me sinta à vontade para voltar a respirar normalmente. Mas ainda assim...
Talvez eu já esteja morto, e este seja o purgatório.
Nunca pensei muito na morte ou no que há depois dela, se é que há alguma coisa; esse assunto costumava me parecer uma inépcia — mal compreendemos a vida, como podemos esperar compreender a morte? —, mas agora não consigo evitá-lo.
Pergunto-me como deve ser morrer. Como deve ter sido para os meus pais. Teriam eles se perdido na escuridão, como eu agora, ou teriam eles se encontrado na luz do além-vida?
Talvez eles não tenham se perdido nem se encontrado, argumento, porque talvez o além-vida seja um mito, uma mentira que nós humanos viemos alimentando século após século puramente por sermos medrosos demais para lidar com a verdade.
Eis a verdade: a morte é o fim definitivo da vida.
Um passo na frente do outro, lábios escancarados, pulmões trabalhando a todo vapor, laringe maltratada. Este sou eu. Sim, este é Isaac Lane. Uma máquina berrante e quebrada. Um robô com defeito. Qualquer porcaria dessas.
No escuro, o tempo deixa de fazer sentido para mim. Eu deixo de fazer sentido para mim. Há quanto tempo estou aqui? Dez minutos, uma hora, um dia? Me pergunto se estou andando em círculos, mas aí escuto um eco — o primeiro de muitos —, e fico tão contente que brado um aleluia.
Direciono-me até a área de onde minha voz rachada retornou sob a obscuridade da câmara e sorrio feito um idiota quando minhas mãos tocam o interior da caverna.
— Oh, que bom. Muito bom.
(Que venha a bonança, meu velho!)
Abro um sorriso involuntário estranho, sem conseguir sustentá-lo por mais do que um segundo ou dois. Essa era uma das falas mais caricatas do meu pai. É agridoce ouvir a voz dele na minha cabeça, aquela voz rouca e sufocada que ele produzia especialmente para sua fala teatral, e saber que nunca mais a ouvirei em outro lugar senão dentro de minha própria mente.
Em matéria de morte, há muitos "nunca mais" envolvidos.
Sigo adiante, arrastando uma das mãos por cima da superfície rústica, incapaz de compreender como aquele túnel sufocante em que eu estava pôde se expandir feito uma bola de chiclete gigante, mas não perco muito tempo pensando nisso. Depois que eu sair daqui terei tempo de sobra para revisitar minhas lembranças e identificar onde me confundi. A Dra. Andrea avisou que eu poderia ter problemas de memória devido à concussão. Será que é isso, no fim das contas? Será que eu apaguei por um tempo e recobrei a consciência só agora? Isso significaria que todo esse episódio se trata apenas de uma pegadinha maldosa de meu subconsciente. Admito que ficaria muito grato se esse fosse o desfecho da história, ao menos em parte — não dá para ficar cem por cento feliz ao saber que você não está batendo bem da cabeça. No mínimo isso me deixaria mais calmo por conseguir dar um nome a minha situação. Se ela tem cura, essa é uma questão mais difícil de responder.
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Neblina
FantasyEm um canto distante no universo, oculto no plano imaterial, um mundo marcado por um vasto continente dividido em quatro bosques é governado pelo filho do Criador. Seus habitantes, dotados de dons elementais, vivem em paralelo com o Mundo Sombrio. N...