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CAPITULO DEZOITO
Sabres de luz colidiram, personagens de desenhos animados lutando em As Guerras Clônicas7. Qing observou avidamente, raspando sua tigela de cereal para cada pedaço de leite açucarado restante. Wangji geralmente mantinha apenas farelo e cereais de granola no apartamento, mas acrescentara uma caixa de Frosted Flakes na entrega do supermercado.
Ele não se incomodou em puxar as costas do futon para o sofá e se sentou de pernas cruzadas ao lado de Qing no colchão, seu próprio cereal mal tocado e encharcado. Ele normalmente nunca pedia mantimentos online, mas não queria lidar com pessoas reconhecendo-os. Ele teria que enfrentar o mundo na segunda-feira quando voltasse ao trabalho, mas esperava que a atenção fosse embora até lá. Certamente havia coisas mais interessantes acontecendo no mundo. Outro acontecimento talvez.
O episódio terminou e Wangji assistiu aos créditos, o anúncio de reprodução automática da Netflix aparecendo no canto da tela. Seria fácil simplesmente deixar outro episódio passar, sentar lá e adiar por mais vinte minutos.
Ele pegou o controle remoto e apertou o botão de parar para lidar com isso.
A colher de Qing fez barulho em sua tigela vazia.
— Não podemos assistir a outro?
— Podemos. Eu só quero conversar por alguns minutos.
Seus ombros caíram e ela olhou para sua tigela.
— Sobre o quê?
— Sobre ir ver alguém com quem você possa conversar sobre o que aconteceu.
— Mas isso vai custar dinheiro. Eu estou bem, pai. De verdade. Foi apenas um sonho estúpido ontem à noite. — Ela ergueu a cabeça, os olhos brilhando.
—Sinto muito.
— Querida, você não tem do que se desculpar. — Ele colocou suas tigelas na mesa de centro baixa e se aproximou, envolvendo um braço em volta de seus ombros magros. — Não há nada de errado em ter pesadelos ou estar com medo. Principalmente depois do que aconteceu em Montana. Foi realmente assustador e perturbador, e não quero que você finja que está tudo bem quando não está.
Hipócrita.
Wangji ignorou a vozinha em sua cabeça. Sim, talvez ele fosse um hipócrita, mas lidaria com sua própria merda mais tarde. Qing veio primeiro.
Ela bufou.
— Mas eu não quero falar sobre isso o tempo todo! Tive um sonho idiota sobre sentir frio no rio, mas estou bem agora. Eu só quero que tudo fique bem novamente da forma como foi.
— Eu sei. E não precisamos falar sobre isso constantemente. Só às vezes? A vovó e o vovô se ofereceram para pagar para que você pudesse consultar um bom médico que sabe tudo sobre essas coisas. Não é saudável engarrafar tudo dentro de você e não falar sobre isso.
— E você? E as coisas sobre as quais você não fala?
— Eu... — Pego. — Ok, ok, você está certa. Eu deveria ver alguém para falar sobre Montana também.
— Não me refiro apenas a Montana. — Ela se mexeu, balançando o pé. —Mamãe era sua namorada?
Seu coração deu um salto.
— Uh, não. Sua mãe era minha melhor amiga e eu a amava muito, mas ela não era minha namorada. Ficamos curiosos, então fizemos sexo para ver como era.
Quando Qing começou a fazer uma miríade de perguntas no início daquele ano, ele mordeu a bala e pegou emprestados alguns livros da biblioteca sobre educação sexual que leram juntos. Ele não queria que ela tivesse problemas, então tentou discutir o assunto o mais abertamente possível, usando uma linguagem direta.
— Você não teve namorada? Ou mesmo saiu em algum encontro? Nunca?
Sua boca ficou seca.
— Wuxian ele pensou, ...
eu simplesmente não conheci a... pessoa certa.
Ela repetiu:
— ‘A pessoa certa’. Pai, você é gay?
— Eu... — Ele tinha que ser honesto. Ele tinha que dizer a verdade, mas nenhuma palavra saiu de sua garganta fechada.
— Eu vi você e Wuxian se beijando no hospital. Eu deveria estar dormindo, mas acordei e pude te ver no espelho.
— Ah.
Diga alguma coisa! Diga a coisa certa!
— Eu ainda te amo muito se você gosta de meninos. — Ela olhou para ele solenemente. — Já percebeu isso, certo?
Um peso foi tirado do peito de Wangji e ele exalou.
— Eu sei, gatinha. Sim, sou gay. Eu realmente não percebi isso por um longo tempo, ou eu teria te contado antes.
— Wuxian é seu namorado?
— Uh... — Confie em Qing para ir direto ao assunto. — Eu não tenho certeza.
Ela franziu a testa.
— Por que não? Wuxian é incrível. O que há para não ter certeza?
— Não é tão fácil.
— Vocês gostam um do outro, certo? Por que tem que ser difícil?
— Estamos a milhares de quilômetros de distância. Há muito o que descobrir.
— Nós nunca iremos vê-lo novamente? Por que ele não se despediu de mim? — A dor estava clara no gemido queixoso de Qing. — Por que ele não veio me ver antes de irmos para o aeroporto? Ele está bravo?
— Não, amor. Tudo aconteceu rapidamente quando saímos, e Wuxian teve que voltar ao trabalho.
— Mas ele estava lá e não se despediu. E se eu nunca mais o ver? Você não quer ver?
Memórias do sorriso de Wuxian e risadas baixas ecoaram, a sensação de sua barba áspera na pele de Wangji, a carícia de lábios e mãos. Um emaranhado de contradições sufocou Wangji. Em um minuto ele estava firme – ele não precisava de ninguém para cuidar dele. No entanto, na próxima respiração, ele ansiava pela força dos braços de Wuxian. Wuxian tinha visto Wangji com todas as defesas retiradas e o queria mesmo assim.
Qing perguntou: — Você ainda gosta dele?
O coração de Wangji apertou quando seu cérebro respondeu claramente: Eu amo ele. Cavando os dedos no futon, ele saiu, — Uh-huh.
Eu o amo?
— Você não quer vê-lo? Porque você está com medo?
Wangji não teve uma boa resposta.
— Eu não sei.
Ela se levantou de um salto.
— Eu acho que você está sendo burro.
— Qing! Não fala assim comigo! — Mesmo se você estiver certa.
— Vou brincar com o Wanyin.
— O quê? Não. Eu não quero que você saia.
Ela bufou.
— Não é Fora. Ele mora lá embaixo. Quero vê-lo. Sim, eu quero brincar.
Wangji abriu a boca para discutir, mas fechou-a. Tê-la fora de sua vista por mais de alguns minutos o deixava nervoso, mas era bom que ela quisesse brincar com o amigp e fazer coisas normais. Ele estaria de volta ao trabalho em breve para pagar as contas crescentes e não poderia trazê-la com ele. Ele tinha que lidar com a realidade de que não podia vigiá-la a cada minuto e que Qing não queria que ele fizesse.
Ele se levantou.
— Está bem. Vamos nos vestir e eu vou acompanhá-la até lá e dizer oi para a Sra. Yu.
Ainda de pijama, a mãe de Wanyin cumprimentou Qing com um grande abraço, seu cabelo escuro encaracolado solto sobre os ombros. Wangji ficou rígido quando ela o abraçou em seguida, as crianças já planejando sem fôlego que tipo de forte construir.
Ele tentou sorrir.
— Oi, Yu. Você tem certeza de que está tudo bem para Qing invadir?
A mulher sorriu.
— Está brincando? Ela manterá  Wanyin e Yanli entretidos por horas com sua imaginação, embora eu mal entenda. — Seu sorriso se desvaneceu.
—Como você está?
— Certo. Eu estou bem.
Com uma sobrancelha levantada em dúvida, Wanyin disse: — Olha, eu sei que nunca falamos realmente sobre nada além do tempo ou das crianças, mas estou aqui se você precisar de um ouvido. Eu sei que você passou pelo inferno.
A garganta de Wangji se apertou.
— Sim. Obrigado.
Yu estava certa de que eles nunca falaram sobre nada sério, embora ela o tivesse convidado para tomar uns drinques com ela e seu marido ou jantar com a família mais de uma vez. Ele sempre disse não. Do que ele estava com medo?
Que eles vissem que eu não era bom o suficiente, que mal conseguia me controlar, que sou um mau pai.
Ele disse: — Você pode me ligar para vir buscá-la quando ela estiver pronta? Eu sei que é apenas um andar e estou sendo paranóico, mas...
Yu apertou seu braço.
— Entendi. Vou levá-la para você.
O celular de Wangji zumbiu em seu bolso, seu número de telefone de infância apareceu na tela, instantaneamente reconhecível.
— Obrigado, Yu. Eu tenho que....
Ela acenou para ele e ele subiu as escadas de dois em dois de volta para seu apartamento. Por dentro, ele não queria nada mais do que fechar as cortinas, voltar para a cama e não ter que pensar em nada.
O telefone vibrou novamente em sua mão e ele quase o deixou cair. Sua mãe sempre fez isso – ligou duas vezes antes de deixar uma mensagem. Ele poderia deixar este sem resposta também. Poderia fingir que nada havia mudado e passar anos novamente sem reconhecer sua família, poderia ficar no controle e fazer tudo normal.
Respirando fundo, Wangji bateu na tela,e atendeu.
— Alô?

        ×××××××××

Ele puxou para um sinal vermelho, perguntando-se pela centésima vez se ele estava louco por concordar em jantar na casa dos pais. Mas sua mãe estava tão ansiosa ao telefone, e considerando que eles estavam pagando para Qing ver um terapeuta, o jantar era um pedido razoável.
O rádio tocou um hit pop barulhento e ele abaixou o volume, olhando para Qing no banco de trás.
— Como você se sente esta noite?
No retrovisor, Qing encolheu os ombros.
— Tudo bem.
Ela o evitou a maior parte do dia e ele deixou, mas era hora de lidar com isso.
— Qual é, essa não é uma resposta real.
Ela revirou os olhos, mas depois de alguns momentos, disse: — Por que eles querem que a gente venha? Achei que eles nos odiavam.
— Qing. A gente conversou sobre isso. Eles não nos odeiam em tudo. Achei que você entendeu o que aconteceu quando você era um bebê. Eles apenas pensaram que você estaria melhor se eles a criassem.
— Porque eles são estúpidos.
— Ei! Sem xingamentos. Eles achavam que sabiam melhor e eram teimosos.
— Estavam errados.
— Sim. Eles estavam, e eles percebem isso agora.
Ele queria acreditar neles – queria tanto confiar neles, mas não tinha certeza se podia. Sim e não. Não depois que eles envolveram advogados e um juiz para tentar levar seu bebê embora.
Mas ele tentaria.
Pela primeira vez desde a adolescência, ele dirigiu pelas ruas de seu antigo bairro. Algumas casas pareciam iguais, e ele fez as voltas de memória, mal olhando para as placas. A quadra de tênis que estava estranhamente espremida na frente da casa de Carson Whitmer havia sumido, substituída por um gramado exuberante e canteiros de flores esculpidos.
O relevo artificial de uma colina no parque parecia enorme quando ele era criança. Ele e Shizui haviam escorregado nele, e agora parecia ridiculamente minúsculo. Sempre foi tão pequeno?
O estômago de Wangji apertou quando ele entrou em sua antiga rua, o crepúsculo caindo. Ele virou à esquerda na garagem e estacionou atrás de um SUV preto reluzente que era um veículo enorme para pessoas que raramente saíam da cidade. Pelo menos eles não haviam dirigido muitas estradas secundárias enquanto ele estava crescendo.
— É aqui? — Qing perguntou, abaixando a cabeça para olhar para cima. — É uma mansão.
Wangji desligou o motor e entrou na casa. Dois longos andares em estilo Tudor – tijolos bege, ripas de madeira marrons nas paredes brancas – com garagem dupla para carros. Canteiros de flores perfeitamente projetados curvavam-se ao longo do caminho de lajes, e o gramado se estendia bastante antes da próxima casa.
— Sim. Acho que sim. Nunca pensei por este lado.
— Você realmente morou aqui?
Ele percebeu mais uma vez o quanto ele tinha dado como certo.
— Sim. Era apenas minha casa. Era normal.
A porta tinha sido pintada de vermelho em algum momento, um toque de cor em meio aos tons de terra. Então aquela porta se abriu e um jovem saiu.
— Quem é? — Qing perguntou.
Wangji levou alguns batimentos cardíacos congelados para perceber que era seu irmão. Ele falou com voz rouca.
— Esse é o seu tio Shizui.
— Isso é sério? Eu pensei que ele era muito mais jovem do que você.
— Ele é. Por sete anos. Ele tem dezoito anos agora. — Wangji tinha visto as fotos de Shizui no Instagram, então não deveria ter sido uma surpresa, mas de alguma forma foi quando Shizui encheu a porta, seu jeans e camisa de botão apertados em um corpo magro e tonificado. Seu cabelo cor era mais escuro do que o de Wangji, e estava cortado bem curto, com exceção de alguns centímetros no topo.
— Vamos entrar ou não?
Por um momento, Wangji teve vontade de virar a chave, jogar o velho Chevy enferrujado de ré e não olhar para trás. Mas ele respirou fundo e o pânico diminuiu.
— Nós vamos.
Qing agarrou-se à mão dele enquanto caminhavam para a porta. Shizui esperou, uma expressão ilegível em seu rosto. Ele acenou com a cabeça para Wangji.
— Ei.
— Ei. Hum, esta é Qing.
— Sim, eu percebi. — Seu rosto se suavizou quando ele lhe ofereceu a mão. — Oi, Qing. Bom te ver novamente.
Ela olhou para Wangji antes de apertar a mão de Shizui.
— Você também. — Ela mexeu na gola de seu vestido de verão roxo favorito.
— Oh, você está aqui! Não ouvimos o carro.
Qiren apareceu, sua camisa bem passada e os botões de punho brilhando. Wangji estava feliz por ter usado sua melhor calça e camisa de botão, embora ele tivesse considerado rebeldemente calça de moletom e chinelos. Seu pai disse:
— Sua mãe está dando os retoques finais em alguns rolos de cenoura e tortinhas de cebola caramelizada. Entre, entre.
Qiren os conduziu para dentro e sem jeito apertou a mão de Wangji e deu um tapinha no ombro de Qing. Ele esfregou as palmas das mãos.
— O que eu posso fazer por você? Qing, nós esprememos um pouco de suco fresco para você. Você gosta de suco?
Ela olhou para Wangji antes de assentir em silêncio.
— Ótimo! — Qiren disse alto demais. — Wangji, você é um cervejeiro? Vinho? Bebidas Alcoólicas?
No surrealismo de seu pai oferecendo-lhe uma bebida, Wangji percebeu que não havia trazido uma garrafa de vinho, que era o que os adultos faziam quando iam jantar na casa de alguém.
— Uh, o que você está tendo. Cerveja, eu acho?
— Cerveja então. Stella está bem?
— Uhum.
Shizui estava por perto e Wangji ansiava por puxá-lo para um abraço. Mas ele não sabia como fazer isso acontecer, então ele seguiu seu pai até a sala de estar, onde sua mãe logo apareceu com bandejas de aperitivos, incluindo macarrão e queijo, claramente voltados para o paladar de Qing. Fei usava um vestido floral na altura do joelho, seu cabelo penteado em um redemoinho chique.
Depois de uma conversa desconfortável sobre o tempo, os Phillies e as matérias favoritas de Qing na escola, eles foram para a sala de jantar. A carne e as batatas assadas encheram o nariz de Wangji, um toque de alecrim trazendo lembranças agridoces.
Fei passou um prato de porcelana para Wangji.
— Seu tipo favorito de batata. Lembra? O alecrim e a sálvia estão crescendo muito bem no jardim este ano.
Assentindo, Wangji colocou um pouco de tudo no prato de Qing. Sua mãe estava sentada na cabeceira da mesa à esquerda, além de Qing, Shizui em frente a eles e Qiren na outra extremidade à direita. O lustre sobre a mesa era diferente do que Wangji se lembrava, mais elegante e mais moderno em um design horizontal.
Eles comeram em silêncio por alguns minutos, todos elogiando a comida com um pouco de zelo, embora ela fosse realmente deliciosa. Qing pegou em seu prato, comendo pequenas mordidas. Wangji sempre tentou o seu melhor para fazer uma variedade de comida com muitos vegetais, mas raramente algo tão sofisticado quanto isso. O lombo foi embrulhado com uma tira de bacon perfeitamente crocante.
Sua mãe cortou cuidadosamente sua carne.
— Então, Wangji. Você tem namorada?
Ugh. Apenas a conversa que ele queria ter.
— Não. Eu não tive tempo para isso.
— Ah. — Seu sorriso estava tenso.
— Nenhuma garota da sua idade na, uh, fábrica? — Ela disse fábrica do jeito que ela faria meia suja enquanto o beliscava entre dois dedos e perguntava de quem era.
— Não. — Wangji mastigou uma couve de Bruxelas e tentou decidir se deveria simplesmente contar a eles e acabar com isso. Qual era o sentido de tudo isso se ele não iria contar a eles quem ele realmente era?
Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, Qing falou, seus olhos duros.
— Por que ele só tem namorar garotas? Talvez ele goste de meninos. Não há nada de errado em garotos gostarem de outros garotos, você sabe.
No silêncio que se seguiu à declaração de Qing, seus pais piscaram e Shizui riu triunfante.
— Eu sabia.
Talvez Wangji devesse estar zangado com Qing por denunciá-lo, mas ele exalou de alívio. Pelo menos foi a céu aberto.
Ele sorriu para ela quando seu pai disse: — Oh.
Sua mãe ainda segurava a faca e o garfo acima do prato.
— Wuxian. Nós...
— Acha que está errado? Repugnante? Como? — Wangji terminou por ela, batendo o pé inquieto. Ele deveria apenas pegar Qing e ir embora. Isso foi um erro.
— NÃO!!! — Sua mãe franziu a testa, as sobrancelhas esculpidas fechadas.
— Posso terminar minha frase? — Depois de um momento de silêncio, ela disse:
— Quando você estava no colégio, seu pai e eu questionávamos se você era gay, mas então tudo aconteceu e presumimos que você não era. Não, não achamos que seja errado, ou nojento ou um pecado.
Seu pai acrescentou: — O menino dos Breslins é homossexual. Capitão da equipe de remo de Yale. Ele acabou de se formar, na verdade. Podemos apresentá-lo.
Wangji engoliu uma gargalhada histérica. Ele devia estar sonhando. As coisas estavam realmente indo bem com sua família.
— Uh, obrigado, mas tudo bem. — Ele olhou para Shizui. — Você sabia?
Enfiando uma garfada de comida na boca, Shizui deu de ombros.
— Eu imaginei provavelmente. Então sei lá. Apenas alguma coisa, eu acho. Não é como se eu me importasse. É legal.
Fei suspirou.
— Por favor, não fale com a boca cheia. — Para Wangji, ela disse: — Então, há algum menino em que você esteja interessado? Stephen Breslin é realmente bonito, você sabe.
— Não! Ele vai ficar com Wuxian. Ninguém mais. — Qing olhou ferozmente, como se desafiasse alguém a discutir, incluindo Wangji.
— Wuxian? — Fei sorriu encorajadoramente. — Quem é?
— Wei Wuxian , — Qing respondeu. — Ele é um guarda-florestal, é inteligente e engraçado e me salvou.
Os pais de Wangji piscaram e trocaram um olhar. Sua mãe disse: — Aquele... homem?
Qiren acrescentou: — Ele é um pouco mais velho do que você, não é?
Wangji cerrou os dentes, todo o antigo ressentimento surgindo.
— Eu sou um homem também. Sim, Wuxian é mais velho, mas não sou adolescente. Muita coisa mudou nos últimos oito anos, e você não consegue ficar aí me julgando. Você não pode me dizer com quem eu devo namorar. — Ele jogou o guardanapo no prato. — Talvez tenha sido uma má ideia. Devíamos partir.
— Tão fácil assim? — Shizui zombou. — É claro. De novo. Isso é o que você faz.
— O quê? — Wangji zombou de volta, a indignação hipócrita endireitando sua espinha. — Isso não é verdade.
— Claro, — Shizui gritou fora. — Você fugiu desse cara, Wuxian também? Aposto que sim.
Ele queria gritar, Eu não! Mas fechou a mandíbula. Ele respirou superficialmente, a culpa ardendo a cada inalação. Ele não conseguia pensar em Wuxian. Não agora.
Ele tinha que lidar com isso primeiro. Estava muito atrasado.
Depois de outra longa respiração, ele disse: — Qing, venha comigo. — Ele empurrou a cadeira para trás.
— Você realmente vai embora? — Seu pai perguntou incrédulo.
— É claro que vai. — Shizui cruzou os braços, a mandíbula apertada.
Qing olhou para ele com os olhos arregalados e Wangji tentou sorrir de forma tranqüilizadora para ela. Ele manteve o tom calmo.
— Eu só vou levar Qing para a toca. Qing, você pode assistir TV enquanto termina seu jantar, ok?
— Não estou com fome.
— Está bem. Vamos levar seu prato e leite para o caso de você mudar de ideia. Nós vamos conversar aqui. Não vamos demorar muito aqui.
— Mas eu quero ficar!
Ele usou seu tom de ‘chega, mocinha’.
— Qing. Por favor, faça o que eu disse.
Bufando, ela carregou seu copo e guardanapo enquanto Wangji pegava seu prato e talheres e a conduzia para fora da sala de jantar e pelo corredor para a sala. A TV era maior do que ele se lembrava, e o sofá envolvente era de couro aveludado, uma mudança da camurça que ele e Shizui haviam arranhado.
A arte era a mesma, gravuras de latão de igrejas da Inglaterra sobre fundos negros, soldados arturianos com espadas e senhoras devotas em vestidos longos e esvoaçantes. Ele ficou impressionado com a memória de se aninhar com seu pai no sofá de camurça, papai contando-lhe histórias de cavaleiros e donzelas.
— Pai?
— Uhum. — Ele se sacudiu e acomodou Qing no sofá com uma bandeja de colo, ligou a TV e começou um episódio de um programa de natureza de David Attenborough na Netflix. Enquanto os chimpanzés piam e subiam nas árvores, Wangji beijou a cabeça de Qing. — Volto em breve. Eu preciso conversar algumas coisas com eles.
Ela acenou com a cabeça.
— Está bem. Eu não vou escutar. Mesmo que eu realmente queira.
Ele teve que rir, um pouco da pressão em seu peito diminuindo.
— Obrigado. Você é uma boa menina. Eu te amo.
— Eu também te amo.
Ele fechou a porta da sala atrás dele. Na sala de jantar, ele encontrou sua família ainda sentada onde os havia deixado, a tensão fervendo no ar e a comida intocada. Ele se sentou, Shizui olhando para o prato do outro lado da mesa.
Wangji disse: — Posso imaginar que deve ter parecido assim para você – que eu fugi.
Sua mãe exalou bruscamente.
— Ah, não. Não, não apenas parece assim, Wangji. — Lágrimas brilharam em seus olhos. — Você foi embora. Fugiu. Acordamos, e você e Qing estavam simplesmente fora. Você tem ideia de como isso foi assustador? Sem nota. Nada! Você esvaziou sua conta bancária e foi isso. Você se foi. Não sabíamos se você estava vivo ou morto.
Wangji bufou.
— Não seja tão melodramática.
— Não sou. — Ela secou os olhos. — É assustador não saber onde seu filho está. Sem saber se eles estão seguros. Você deve entender isso agora, especialmente depois do que aconteceu em Montana.
Ele sentiu o estômago embrulhar.
— Não é a mesma coisa.
— Noite após noite, ficamos acordados, rezando para que você estivesse bem. — Ela engoliu em seco sua taça de vinho, o líquido vermelho espirrando. —Fiquei imaginando todas as coisas indizíveis que poderiam acontecer. No momento em que rastreamos você, estávamos frenéticos.
Seu pai falou.
— Estávamos com medo, Wangji. Estávamos com medo por você e por aquele doce bebê. Você estava tomando decisões precipitadas e, embora tivesse completado dezoito anos, não achávamos que você tivesse idade suficiente para ser um pai responsável. Então, sim, entramos com uma ação judicial porque achamos que você não nos deixou nenhuma escolha.
— Não. Não, não vire isso para mim. Você já estava falando sobre levar Qing embora. — Ele olhou para sua mãe. — Eu te ouvi. Ao telefone ‘Teríamos que declarar Wangji um pai inadequado’, você disse.
Ela abriu e fechou a boca.
— Mas isso foi apenas uma discussão. Queríamos saber as opções. Ficamos frustrados. Estávamos errados e percebemos isso. Na época, realmente pensamos que seria melhor para você e Qing se tivéssemos a custódia. Mas não tínhamos intenção de realmente levá-lo ao tribunal. Era a última coisa que queríamos.
— Mas foi exatamente o que aconteceu, — disse Shizui. Ele olhou de seus pais para Wangji e vice-versa. — Como todos vocês deixaram isso ficar tão fodido?
— Lan Shizui.
Ele soltou uma risada.
— O que, mãe? FODIDO? Acho que todos nós somos velhos o suficiente para lidar com isso. Então vamos lá, vamos colocar tudo para fora. Vocês estragaram tudo. Completamente. E Wangji não deveria ter fugido sem pelo menos ligar para dizer que ele e Qing estavam bem. — Para Wangji, ele acrescentou: —Isso realmente foi uma merda, cara. Você nem me ligou. Eu entendo porque você estava chateado com eles. Mas o que eu fiz?
— Você não fez nada, eu juro. — Wangji odiava a dor gravada no rosto de seu irmão.
— Eu era uma criança e você simplesmente sumiu. Você não se preocupa comigo? Eu sei que era irritante, e eu roubava seus videogames, monopolizava o banheiro e comia os últimos biscoitos...
— Não! Não foi nada que você fez. Você não fez nada de errado. — Wangji passou a mão pelo cabelo, tentando encontrar as palavras certas. — Eu mandei uma mensagem para você, mas eles mudaram seu número.
— Isso não foi até depois do caso no tribunal, — disse Qiren.
— Eu só... Eu não queria envolver você. — Wangji se encolheu com sua desculpa esfarrapada.
— Como se eu não estivesse envolvido? — Balançou a cabeça. — Cara, eu estava envolvido. Confie em mim. Não podia fazer nada. Eu não podia ir a lugar nenhum. Eles estavam tão paranóicos que algo iria acontecer comigo também. Não apenas meu irmão foi embora sem dizer uma palavra, eu estava preso aqui sem você. E então, depois que você conseguiu a custódia, eles colocaram todo o seu foco em mim. — Ele olhou entre seus pais. — Eu sei que vocês não queriam me sufocar. Era apenas intenso às vezes.
Seu pai acenou com a cabeça.
— Eu entendo.
Shizui disse: — Mas o verdadeiro problema é que nenhum de vocês tentou consertar isso.
As palavras pairaram no silêncio denso enquanto eles se encaravam. Eles haviam sido uma família uma vez – falhos e imperfeitos, mas uma família mesmo assim. Agora eles eram estranhos e, naquele momento, Wangji realmente percebeu o quanto havia perdido. Quanto todos eles perderam.
Apontando, Shizui acusou Wangji.
— Você queria tanto provar que era um adulto, e claramente você trabalhou duro criando Qing. Mas não se supõe que os adultos sejam maduros e não guardem rancores? E tudo bem, meu número de telefone mudou. Então era isso. Você apenas desistiu? Não havia outra maneira de entrar em contato? Não é como se você não soubesse onde eu morava.
Irritado com uma grande vergonha, Wangji sussurrou: — Você está certo. Sinto muito. Eu estava muito envolvido em minha própria dor. Eu estava determinado a não precisar de ninguém e provar que todos estavam errados. Não pensei em como você se sentia. — Dizer isso em voz alta era como engolir cacos de vidro. — Eu disse a mim mesmo que você me contataria se quisesse. Eu coloquei a bola no seu campo. Não foi justo.
Shizui engoliu em seco.
— Sei que estou sendo um hipócrita porque não entrei em contato com você quando fiquei mais velho. Mas eu estava com muito medo de que você desligasse ou fechasse a porta na minha cara. Então, eu também não tentei.
Wangji olhou para seu irmão e seus pais, as três pessoas de quem ele uma vez foi mais próximo no mundo.
— Não importa de quem é a culpa, ou o que qualquer um de nós fez ou deixou de fazer. Vamos consertar agora e seguir em frente. O que acha?
Em uníssono, eles disseram: — Sim.
A mãe dele pegou a sobremesa – a favorita de Wangji desde a infância, um bolo de morango com creme fresco – e eles se juntaram a Qing na cova, equilibrando as tigelas nos joelhos e observando os chimpanzés cavarem em busca de cupins. Sua vida havia se tornado um momento surreal após o outro.
Os pensamentos de Wuxian circulavam como um tubarão, a culpa crescendo. Shizui estava certo. Wangji absolutamente fugiu. Depois de tudo o que aconteceu – terrível e incrível – ele recuou desesperadamente, agarrando-se a alguma aparência de normalidade. Qualquer pedaço de controle que ele pudesse agarrar depois de perder Qing e mal consegui-la de volta.
Mesmo agora, ele gostaria de poder se enrolar e dormir um pouco para não ter que pensar.
— Eles não são espertos, usando paus como esse? — Disse Fei.
Wangji voltou a se concentrar na TV quando Qing disse: — Ninguém sabia que eles usavam ferramentas até que Jane Goodall os viu. Eu fiz um projeto sobre ela.
— Ah... que interessante. — Mamãe sorriu. — Adoraríamos ver seu projeto algum dia.
Ainda havia muito o que discutir com sua família, e era estranho, cascas de ovo por toda parte sob os pés. Mas cercada por seus pais e irmão pela primeira vez em anos, Qing se aninhou ao seu lado, era um começo.


(....)

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