VII

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Tinhamos uma amiga que se chamava Eva. Bem, não era inicialmente minha amiga, mas sim do Ricardo. Quando fui viver para Inglaterra, ele já lá vivia há alguns anos com os amigos, numa casa grande. Era o Tiago, a Eva e o namorado e o Ricardo. E depois vim eu. Rapidamente me acolheram todos muito bem e senti-me em casa. Acabei por me ligar muito à Eva e posso dizer que nos torná-mos próximas.

Quando eu engravidei, eu e o Ricardo decidimos alugar uma casa para iniciarmos familia. A Eva e o namorada haviam se separado entretanto.

Um dia, o Tiago decidiu voltar ao seu país e a Eva viu-se obrigada a mudar para uma casa mais pequena. Teria que sair daquela casa onde viviamos todos, mas só poderia entrar na nova uma semana mais tarde, pelo que nos oferecemos prontamente a dar-lhe guarida. Só tinhamos o nosso quarto e o do bebé, que na altura estava uma confusão de caixas e mobilia para montar. Mas tinhamos um sofá. Tinha todas as comididades. Viamos sempre as nossas séries juntas e sabia-me bem ter ali uma amiga perto todas as noites para conversar.

Um desses dias, estava com uma dor de cabeça abismal. Decidi jantar, tomar um comprimido e ir deitar-me. O Ricardo e a Eva ficaram na sala.

No outro dia de manhã, quando me dirigi à cozinha para comer algo, já um pouco melhor, a Eva estava a fazer a mala e pareceu-me um pouco transtornada. Mal me olhava nos olhos.

- O que se passa? Vais te embora? - perguntei, confusa.

- Sim, vou para casa de uma amiga que fica mais perto da faculdade.

Vivia um pouco na periferia da cidade e a Eva tinha que apanhar 2 transportes para chegar à faculdade. Fazia sentido a sua resposta, pelo que a apoiei e perguntei se precisava de ajuda.

Um pouco mais tarde, estava a preparar-me para ir às compras com o Ricardo e chamo-o para perguntar se estava pronto. E não tenho resposta. Volto a chamar e nada.

Aproximo-me do quarto e espreito. Vejo-o sentado na beira da cama, extremamente concentrado no telefone e consigo perceber um sorriso a querer saltar-lhe dos lábios.

- O que estás a fazer?- pergunto.

Vejo como se apercebe da minha aproximação e se levanta rapidamente vestindo o casaco.

- Vamos lá. Já estamos atrasados. - Diz.

Sei que me está a esconder algo. Consigo senti-lo. O meu sexto sentido raramente falha. E vou desconbrir o que se passa.

Estamos a caminho do supermercado. O silêncio é ensurdecedor. Nenhum de nós profere uma palavra em todo o percurso. Sinto a tensão pairar. Estamos na primavera. Aprecio as flores a desabrochar. Amarelas, azuis, algumas rosas. Abro a janela para poder sentir-lhes o aroma e também para receber algum ar fresco pois consigo sentir uma dor nas têmporas a instalar-se. Dor de cabeça deveria ser o meu nome do meio.

O telefone toca. O nome da Eva surge no ecrã do seu telemóvel. Toca uma vez, toca duas. Pergunto-lhe se não vai atender.

- Não deve ser nada de importante. Quando regressarmos ligo-lhe.

Não fiz grande caso. Prossegui a minha observação da flora.

O telefone toca. E desliga. E volta a tocar. Á quarta chamada peço-lhe que atenda.

- Parece ser urgente. Pode precisar da nossa ajuda. Atende.

- Estou a conduzir, ligo-lhe na volta. - retorquiu.

Consigo ver-lhe uma veia pulsar no pescoço. Não percebo. Talvez esteja calor. Tem o casaco vestido e parece realmente desconfortável.

O telefone volta a tocar. Desta vez é um número não gravado. O Ricardo está a procurar também um trabalho, pelo que pensou de imediato que fosse alguma oferta. Vejo-o clicar no botão de atender. Como conduzia, coloco-o em altifalante.

A pessoa do outro lado da linha, apresentou-se como o novo namorado da Eva. Já tinhamos ouvido falar nele. A Eva menciono-o uma ou duas vezes, mas não sabemos muito dele. De imediato não entendi porque motivo nos contactaria. Ou neste caso, ao Ricardo.

Rapidamente esta chamada tomou umas proporções horrendas. O namorado da Eva proferia diversas palavras muito pouco simpáticas ao Ricardo e enumerava tudo o que pretendera fazer quando se encontrasse com ele. Nesse momento as peças na minha cabeça começaram a juntar-se.

A Eva querer sair de nossa casa para a de uma amiga.

Não olhar-me nos olhos naquele dia.

O Ricardo muito estranho com o telefone na mão a escrever mensagens freneticamente. Algo estranho nele, que nunca foi adepto de tecnologias. Preferia o humano, o toque.

E agora, todas estas chamadas. As da Eva, que o deixaram visivelmente perturbado. E agora o namorado dela. Que foi a confirmação.

O Ricardo traiu-me com a nossa amiga. Na minha casa. Na minha sala, enquanto eu dormia na divisão ao lado.

- Para o carro. - Peço-lhe.

- Isto não é o que parece. Juro, vou explicar-te tudo. -retorquiu.

- Para o carro! .- Grito. Acho que nunca tinha gritado tão alto na minha vida. Não ajudou à minha dor de cabeça, mas aqui estamos. Posso dizer neste momento que tenho dor de corno.

Abro a porta e fico parada do lado de fora do lugar do pendura. Peço-lhe que venha ter comigo. Não tem coragem de olhar-me na cara. Exatamente como a Eva, naquele dia. Peço-lhe o telefone. Nesse momento vejo como os seus ombros descaiem e os olhos esmorecem. Sei que é culpado. Não restam dúvidas. Quase não precisava de ver as provas no seu telemóvel. Mas preciso saber como e quando.

Tenho as mãos a tremer, mas consigo perceber assim que desbloqueio o telefone algo que não contava. Mudara o código. Durante todos os anos que estivemos juntos, sempre pude aceder ao seu telefone. Não que o fizera com frequência. Não o fazia de todo, salvo alguma situação em que fosse necessário ou me pedisse que o fizera. Nunca me apercebi da sua intenção de esconder algo. Talvez esta tenha sido a primeira vez. Péssimo trabalho desde já.

Sinto o sabor do sal das minhas lágrimas tocarem-me os lábios. Ainda não vi nada, mas já sei o que me espera. Uma facada em cheio no peito. Um murro no estômago. Uma desilusão para o resto da vida.

- « Não esperava que fosses assim. Tão boa. Tão quente. Ainda sinto o teu gosto. Quando podemos combinar novamente? » Um sentimento de nojo atinge-me antes do sentimento de tristeza.

A resposta da Eva também me surpreende.

- « Vou contactar-lhe tudo. Isto foi um enorme erro. Não vai voltar a acontecer, mas temos que arcar com as consequências. Tenho namorado e tu também e nenhum dos dois merece isto. »

- «Não podes fazer isso Eva. Vais estragar-me a vida e a tua também. Ninguém precisa saber. Se não queres repetir tudo bem. Sei que gostaste tanto quanto eu. Mas não podes pensar em contar isto a ninguém. Peço-te, como amigo.»

Quão ordinário tem que ser para responder uma coisa destas. "Sei que gostaste tanto quanto eu."

- Leva-me a casa. - Digo entre lágrimas.

Gostava de não mostrar a minha fraqueza neste momento. Preferia pregar-lhe um enorme estalo, partir-lhe o telemóvel e ir-me embora sem nunca mais olhar pra trás. Mas acho que sou uma cobarde. Não o consigo fazer.

Ele faz o que lhe peço sem questionar.

Espero-te um diaOnde histórias criam vida. Descubra agora