14. A PARTIDA

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Chegamos em casa na hora do crepúsculo. Jantamos as poucas sobras do almoço e então dá-se início à agitação pré-viagem.

Duas bolsas grandes são colocadas em cima da mesa da cozinha; dentro delas, Nim, Bruce e Anna começam a organizar as coisas para a viagem enquanto vovó Lourdes vai para o quarto descansar. Ofereço minha ajuda, mas eles recusam dizendo, "com todo o respeito", que devo deixar isso com quem entende. Procuro não ser afetado e espero no quarto de Nim, deitado na pequena cama.

Fico pensando no quanto os Jansen são unidos — quase como meus pais e eu fomos e muito mais do que eu e os Wright jamais seremos. Cada um deles é muito diferente, mas sinto que defenderiam um ao outro até a morte se fosse necessário.

Vem-me à memória a discussão que tive com tia Linda antes de vir para Halel, todas aquelas coisas que falei com tanta convicção e que agora não me soam tão sensatas. Ela estava se abrindo comigo e só consegui pensar no meu próprio nariz. Tudo bem que expressei a minha verdade, ainda que de forma rude, mas em algum momento das últimas horas comecei a refletir sobre o que é melhor: ter razão ou ter empatia.

Achei que eu era a vítima, e não é uma ideia cem por cento equivocada — sou, como qualquer pessoa, uma vítima da crueldade da vida, ao mesmo tempo em que sou uma vítima de forças maiores e estranhas —, mas acho que naquela hora eu me coloquei no lugar de opressor.

Não sei o que deu em mim. As palavras esguicharam de mim como se estivessem há muito aprisionadas. E o mais estranho é que não tenho certeza se eu realmente penso todas aquelas coisas. Algumas sim, outras vieram à tona no calor do momento sem aviso prévio. Começo a me locomover pelo cômodo a fim de não me deixar ser tomado pelo remorso.

Quando Nim entra no quarto, estou tirando o relógio do bolso de minha calça e transferindo-o para o bolso da calça que ele me emprestou.

— Tudo pronto? — indago.

— Tudo pronto.

— Já posso saber como vamos viajar?

— Ainda não. — Ele se apoia na pequena cômoda ao lado do guarda-roupa e fica estalando os dedos das mãos um por um. — Estou começando a achar que você realmente sofreu um apagão.

— O quê? Por quê?

Dobro minha calça e a coloco com cuidado na beirada da cama. Nim cruza todos os dedos e estala-os de uma vez.

— Lá na catedral — diz. — Pensei que você fosse dizer alguma coisa sobre o Elucidário.

Eu suspiro.

— Não foi o Elucidário que eu li, foram os livros do meu pai — revelo, pois não suporto mais esse segredo pesando em meus ombros. Nim franze a testa, mas um instante depois suas pálpebras se erguem em uma vaga lucidez.

— Estou me lembrando agora... Quando o encontrei no Lago da Cachoeira, você falou alguma coisa sobre uns livros que seu pai havia escrito.

— Sim.

— Que livros são esses?

Faço uma pausa breve. Como vou explicar o que estou prestes a dizer depois que disser? Perturbado demais para alimentar o tribunal, atiro-me no abismo e espero pelo melhor.

— É uma duologia. Se chama As fantásticas histórias de Halel. — Imediatamente me vejo concentrado em sua linguagem corporal. Ele troca o peso de uma perna para a outra, mas não diz nada. Continuo: — Li um pouco depois que voltei para o meu mundo. Os livros são basicamente um conjunto de relatos sobre Halel narrados com uma prosa meio infantilizada.

Ele permanece em silêncio por mais um tempo, e quando fala, não é o que eu esperava.

— Acho que já entendi.

NeblinaOnde histórias criam vida. Descubra agora