No dia em que partiu, ainda usava os brincos pequenos em formato de coração. Pequenos o suficiente para não incomodar, bem como tinha pedido. Eles brilhavam na ponta de suas orelhas enrugadas e machucadas, e apesar de seu estado físico deprimente, eles ainda permitiam a presença da delicadeza.
Não importava a ocasião, ela estava sempre com eles. Mesmo antes de adoecer, eles já estavam lá, provando para as pessoas que os mais velhos também se importam com a aparência. A idade é só um porém, que pode ser entendido como uma lição de vida, e no caso dela, foi bem compreendido. Lembro bem, dos dias que precisei sair para lhe fazer companhia na rua, e sempre ganhava olhos julgadores em mim. Acabei por trocar muitas roupas, só para ficar a seu gosto.
Também lembro das poucas noites de cantorias que ela me fez visitar, talvez com o desejo de estar com a família completa. Sempre fizemos os seus gostos, às vezes sendo contra, às vezes simplesmente por aceitar embarcar numa aventura que poderia gerar muitas lembranças. E em todas elas, estamos felizes. O que me faz acreditar que nunca fomos contra, tínhamos um certo interesse em todas as viagens que ela pôde proporcionar.
Lembro do vestidinho vermelho, usado apenas em grandes ocasiões, do cabelinho amarrado para trás, dos brincos em formato de coração. Brincava com o aroma do seu perfume, dizendo que era extravagante demais para uma senhorinha. Ela dizia que nunca sairia feia para um lugar que só teria gente bonita e que se fosse para sair desarrumada, era melhor não sair.
Enquanto estava doente, acamada, sem perceber que o tempo corria ao seu redor, eu me arrumava, ia para festas de aniversário, comemorava a vida de outras pessoas e sorria pela oportunidade de desfrutar de alguns momentos. Imaginei, pouquíssimas vezes, como ela estava se sentindo, sem poder desfrutar de momentos antes vividos com vigor. Imaginei, pouquíssimas vezes, para qual lugar ainda poderíamos levá-la, antes de um possível adeus.
Percebi, no mesmo dia em que a deixei no cemitério, que os momentos vividos com vigor ainda trariam dor ao meu coração. Também percebi que o luto não seria algo fácil de aceitar, percebi que esses momentos ao lado dela fariam falta, não só para mim, mas para os outros ao meu redor. Coisas simples lembravam dela e ela lembrava dos brincos de coração.
Hoje, eles já não permitem a presença da delicadeza. Estão guardados dentro de um papel branco, dobrado várias vezes para que pudesse chegar ao seu destino, no qual tive receio de abrir para verificar, mas que não pude evitar o desejo de vê-los uma última vez.
De forma bem inocente, tentei vê-los como um par de brincos normais, mas foi automático e por um momento radiante, pude ter o deslumbre do brilho dos pequenos brincos de coração.
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Mais Uma Vez: eu e meus textos
DiversosEsses são os pensamentos que rondam a minha cabeça em qualquer hora do dia. Talvez sejam românticos demais, melancólicos demais, dramáticos demais, porém, são verdadeiros.