CAPÍTULO O2

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Primavera, 20 de Janeiro de 1970.

A luz do sol esgueira-se pelas cortinas claras, pintando o quarto em tons dourados. O ar está quente e úmido, carregado com o perfume das flores lá fora. O som dos veículos percorrendo as ruas é audível, mas não incomoda de fato o sonho alegre que Ritinha estava tendo naquela manhã. Mesmo sem vontade de sair de sua cama, ela sabia que era necessário se levantar. Ela acabava por despertar lentamente, os olhos piscando contra a claridade. Os lençóis de algodão grudavam na pele suada. Seus cabelos desalinhados formavam uma moldura bagunçada em torno do rosto. Ela esfregou os olhos, afastando o sono.

Ainda demoraram alguns minutos até que finalmente ela despertasse completamente. Seus olhos, sempre tão curiosos e alegres, procuraram algo especial no cômodo. Sobre a cadeira em frente à penteadeira, um vestido amarelo com detalhes floridos e coloridos estava dobrado e passado, como sua mãe gostava de deixar. Maria Rita se espreguiçou, com os músculos ainda preguiçosos e os pensamentos meio turvos. Ela sabia que aquele dia reservava grandes momentos. Afinal, não é todo dia que se completa dezessete anos. Assim, a menina se vestiu, sentou-se na cadeira diante da penteadeira e se aprontou, arrumando os longos cabelos negros e ondulados. O penteado favorecia seu rosto delicado. Sem dúvida, era uma menina muito bonita, ao menos era o que sua mãe costumava enfatizar para ela.

Após se arrumar, Rita calçou as sandálias e desceu as escadas do sobrado onde sua família morava. Ela caminhou até a cozinha, onde o cheiro do café fresco misturado ao aroma do pão recém-comprado enchia sua boca de água. Um sorriso surgiu em seus lábios rosados, e Rita envolveu sua mãe pelas costas em um abraço apertado, enquanto ela terminava de passar o café.

— Bom dia, mamãe.

— Bom dia, minha filha. Achei que você fosse aproveitar seus últimos dias de férias e dormir até mais tarde. De pé, tão cedo? Seus irmãos ainda nem saíram da cama. — Cícera sorria, deixando sobre a bancada de mármore o coador e o fervedor com o restante de água quente, se virando para envolver sua filha mais velha em um abraço aconchegante. Maria Rita costumava dizer que o abraço de sua mãe tinha cheiro e gosto de mel.

— Está abafado hoje, mamãe. Não conseguiria ficar na cama de qualquer forma com esse calor. E também, quero aproveitar os últimos dias de férias antes que a escola retorne, ainda mais hoje. — Rita se desprendeu dos braços de sua mãe e caminhou até a geladeira, pegando a garrafa de leite e a manteiga na vasilha, colocando-os sobre a mesa. — Se passar o restante das minhas férias dormindo, não vou aproveitar nada. Aliás, mamãe, onde está o papai? Já saiu para trabalhar?

— Ele foi até o mercadinho do seu Felipe buscar um pacote de açúcar e mais algumas coisas para o café. Você sabe como seu pai é, Ritinha, quando lembra de uma coisa, esquece outra.

Tanto mãe quanto filha deram uma risada complacente ao pensarem em seu Sebastião, ou como preferia ser chamado pelos mais íntimos e até os não íntimos, seu Tião. Rita terminou de ajudar sua mãe, a tempo de Zé e Paulinho descerem as escadas, encrencando um com o outro. Após se mudarem para São Paulo, Cícera engravidou uma certa vez e deu à luz a mais um menino, que ganhou o nome de Paulo em homenagem à cidade que, para eles, representava o grande começo de suas vidas.

Ela, com certeza, gostava da posição de irmã mais velha. Afinal, os meninos tinham que obedecer e ouvir suas ordens quando os pais não estavam em casa, além de ajudá-la nas tarefas. Rita era muito apegada aos dois e sempre fazia o possível e o impossível pelos garotos, que agora estavam se tornando homens, crescendo e se aventurando.

Cícera agradecia que suas manhãs eram sempre assim, cheias de risos alegres e um falatório que não tinha fim quando os três irmãos estavam reunidos à mesa. Ela deslizou os dedos pelos cabelos do filho caçula e deixou um beijo no topo de sua cabeça. José Luiz sentou-se à mesa, pegando seu copo e enchendo-o com leite, resmungando algo que só ele entenderia. Rita também se juntou ao irmão quando escutou o rangido do portão de ferro, com Sebastião entrando e se despedindo de seu colega que havia encontrado no caminho. Para a família Cruz, os dias em São Paulo durante aqueles anos foram desafiadores. Abandonar sua terra natal com a possibilidade e a esperança de um futuro melhor não era para qualquer um, ainda mais sabendo que tudo poderia ter dado errado e talvez eles nem sequer pudessem voltar para Caririaçu. Mas ali, reunidos para mais um café da manhã, entre risos, conversas e trocas de provocações entre os filhos, tudo fazia sentido e parecia ganhar mais cor.

RETRATO URBANO - VOLUME 01Onde histórias criam vida. Descubra agora