𝙲𝙰𝙿𝙸𝚃𝚄𝙻𝙾 𝙳𝙾𝙸𝚂

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Pra resumir, o internato é enorme. Tudo muito bonito, tudo muito chique, tudo muito organizado.

Tudo isso pra nos distrair que estamos dentro de uma prisão.

Cheguei aqui quando tinha dezesseis, logo após o incidente com meu irmão. A ideia me veio numa manhã de domingo, quando estava sentada a mesa em silêncio com meus pais. Lembro que estava tirando uma pelezinha da unha com cuidado pra não sangrar até meu pai decidir naturalmente:

- Você vai para um internato no interior do estado, as empregadas já estão fazendo as malas e já tem o que precisa na sua conta bancaria.

Nesse momento ergui meus olhos e vi minha mãe apática tentando cortar um pedaço de carne como se nada tivesse acontecendo. Puxei a pelezinha do dedo sem nem sentir a dor, mas o sangue escorreu pelo meu dedo.

- Tudo bem. - respondi, resignada.

Não consegui almoçar. Apenas me levantei, o ruído da cadeira no piso fazendo um grande barulho no silencio da sala de jantar. Lembro que minhas mãos formigavam, além de estarem geladas como meus pés.

Meu corpo estava acionando o modo de emergencia,  bombeando sangue para meus órgãos vitais como se eu estivesse prestes a morrer.

Talvez estivesse. Não entendo como meu corpo aguentou tanto esse processo de noradrenalina naqueles dias, a sensação parou de ser percebida por mim depois de acontecer com frequência.

Então eu cheguei aqui.

E tudo se acalmou.

Não me deixam me matar.

É sério, eu já tentei.

- Beatrice! Beatrice! - é a voz rouca da supervisora de nossa ala.

Me viro e a encaro. Ela vem andando apressada até mim, com suas pernas curtas e sua estatura de um metro e meio.

- Baixe a saia, está quase aparecendo sua bunda. - ela julga, olhando para minhas pernas.

- Bem... Essa é a intenção... - falo de um jeito tristonho enquanto baixo a saia.

- Seu senso de humor é perspicaz. - ela observa e se aproxima  pra baixar mais ainda a barra de forma bruta.

É, ela tem liberdade pra isso.

- Iremos tornar as regras de vestimenta e comportamento bem mais rígidas, então espero que não queira deixar seus pais pobres. - ela se afasta, baixo meu olhar e vejo a barra chegar quase ao joelho - Você sabe o que acontece quando vai contra nossos comandos, não sabe?

- Mas essa não é uma estratégia pra vocês tirarem mais dinheiro dos nossos pais? Impondo regras para a gente sentir a tentação de quebrar e assim que a gente o faz, vocês metem multa? - argumento, realmente pensativa.

Sra. Menezes me observa boquiaberta por alguns segundos, até se aproximar novamente e apertar o nó da minha gravata. Ela cheia a hibisco.

A pele em meu pescoço pinica quando ela ajeita minha gola.

- Um novo professor vai vir. - ela ignora meu discurso, como sempre - Modificaremos algumas regras, então fique esperta.

Franzo a testa.

- Quem é ele? Olha só o que está fazendo, sra. Menezes. Modificando um sistema por causa de um homem! Que vergonha para o feminismo!

- Beatrice! Palavra proibida! - ela aponta o dedo indicador como se eu fosse uma criança.

- Perdão. - Dou um tapinha na minha própria boca e  lhe dou as costas.

Sim, feminismo é uma palavra proibida aqui. Assim como revolução, sexo, tesão, desejos carnais e... Se eu for citar tudo, irei criar um novo dicionário.

Um dicionário que eu adoraria explorar.

Desvio de um grupo de garotas cochichando e entro no refeitório, as cores que predominam nesse lugar é o marrom da madeira do piso e o branco das paredes, apenas isso. Há mesas redondas que acomodam quatro meninas cada, agora tudo está lotado.

- Trix! - escuto uma voz familiar que me faz abrir um sorriso espontâneo - Me espera, porra.

O palavrão ela sussurra assim que chega do meu lado e enlaça o braço no meu. Essa é a Kira, a pessoa mais brilhante que já conheci na vida. Nos conhecemos desde que cheguei, porque basicamente Kira cresceu nesse lugar.

Tudo isso porque sua família inteira é da mafia coreana. Uma das mais ricas e poderosas do país. A mãe de Kira, num nobre gesto de maternidade, declarou que a filha não participaria da "linhagem", então deu um jeito de livrar Kira dos perigos.

Não adiantou. Kira é o próprio perigo, carrega dentro de si toda esperteza e estratégia da família.

- Você está... Exótica. - elogio.

Ela pisca os olhos pra mim exageradamente e sorri cheia de energia.

- É minha nova forma de usar maquiagem, ao contrário! Rímel na boca, batom nos olhos, delineado nas bochechas e blush nas sobrancelhas. - explica - Ninguém tem o poder de ditar como tenho que usar as coisas. Você deveria usar.

E por incrível que pareça ela está linda.

- Eu já pareço uma maluca sem, imagina inventando essa moda. Não quero voltar pro hospital psiquiátrico.

- Mas você não disse que a comida de lá é gostosa? - ela ergue as sobrancelhas, se desvencilhando de mim pra pegar sua bandeja.

Aperto os lábios para não rir dessa piada macabra.

- Oi? A comida tá gostosa? Foi isso que escutei? - Sara aparece entre nós como magica.

- Não, a do hospital psiquiátrico que fui. - respondo, abrindo um sorriso caloroso - Bons tempos!

- Ceús, Beatrice! Que brincadeira sem graça. - ela me olha com reprimenda.

- Ela acha que é brincadeira? - Kira me olha espantada.

Sara sai de perto de nós balançando a cabeça e volta pra sua mesa com sua bandeja. Eu e Kira caminhamos juntas até a nossa mesa.

- Sra. Menezes está surtando. - comento quando a vejo ao longe ajeitando a camisa de uma garota - O que ela tem?

- Ah... Esse é o efeito de um homem num ressinto cheio de meninas friviando de hormônios. - Kira morde seu pão doce.

- Ainda não entendo quem é o perigo. Ele ou nós. - tomo um gole do meu café, sentindo o liquido quente e meio amargo descer por minha garganta.

Kira fixa os olhos nos meus e com um sorriso enigmático diz:

- Aposto meio milhão que vai ser você.

Isso me faz rir.

Porque provavelmente é um tiozão de 80 anos. E Kira sabe disso, por isso começamos a rir.

UM ÁVIDO AMOROnde histórias criam vida. Descubra agora